Conheça a coletânea que revela o drama de alguns dos principais conflitos internacionais do século por meio do JHQ em: Reportagens de Joe Sacco
A coletânea Reportagens de Joe Sacco é possivelmente o livro de maior êxito do autor do ponto de vista jornalístico. Reúne matérias publicadas em diversos veículos de imprensa entre 1998 e 2011, com foco em vítimas da guerra e da miséria.
No Brasil, teve sua primeira edição em 2016 pela Quadrinhos na Cia, totalizando 200 páginas. A maioria P&B, no estilo de arte característico de Sacco, que inclui cenários realistas e personagens com toques cartunescos, influenciado por Robert Crumb e outros autores do underground norte-americano.
As histórias de Reportagens de Joe Sacco
As matérias da coletânea são organizadas em cinco capítulos, por temas. No primeiro, “Haia”, temos “Os julgamentos de guerra”, onde Sacco relata, em seis páginas, sua experiência em duas semanas de 1998, quando acompanhou o Tribunal Penal Internacional da antiga Iugoslávia nos Países Baixos.
Para quem leu a excelente Uma história de Sarajevo (2003), serve de acréscimo, pois mostra como alguns réus dos Balcãs Ocidentais eram julgados por crimes de guerra. Com destaque para Radovan Karadzic, que também aparece em “Natal com Karadzic”, de Sacco, publicada na coletânea Comic Book: O Novo Quadrinho Norte-Americano pela Conrad, em 1999.
“Os julgamentos de guerra” saiu na revista Details em novembro de 1998, com Art Spiegelman (Maus) como editor. É legal ver os desenhos de Sacco coloridos, no caso, por Rhea Patton.
A visita de Joe Sacco ao Tribunal de Haia é desenhada com cores de Rhea Patton
“Territórios Palestinos” reúne “Hébron: por dentro da cidade”, que saiu na Time em março de 2001, “A guerra subterrânea em Gaza”, da New York Times Magazine de julho de 2003, e ilustrações variadas de Gaza. Na primeira, em quatro páginas igualmente colorizadas por Patton, vemos um pouco da vida e dos pensamentos de judeus e palestinos em Hebron, na Cisjordânia, em meio a balas e toques de recolher.
A segunda – a partir daqui todas são em P&B –, mostra a campanha do exército israelense para acabar com túneis em que contrabandistas faziam transportes de armamentos e drogas em Rafah. O problema é que, para isso, dezenas de casas civis acabavam, segundo a reportagem, sendo derrubadas. Apesar de as econômicas quatro páginas, Sacco consegue reproduzir com sua já conhecida atenção os relatos tanto dos militares quanto dos civis.
“O Cáucaso” traz a reportagem “A guerra das chechenas”, de 41 páginas, feita para uma coletânea de livros (I Live Here) cujos lucros seriam revertidos à Anistia Internacional. Nela, Sacco acompanha mulheres que viviam como refugiadas internas em Inguchétia – área fronteiriça com a Chechênia –, nos assentamentos de barracas ou fábricas abandonadas.
Normalmente viúvas e com vários filhos, elas fugiam da guerra e da violência na terra natal. Todo o contexto e histórico do conflito entre o governo russo e a Chechênia são apresentados, mas o foco do jornalista são as histórias pessoais – que muitas vezes se repetem –.
“Refugiados? Onde?” é uma matéria de opinião de duas páginas que saiu no Boston Globe em 17 de novembro de 2002, sobre como a Rússia buscava fingir que não havia mais problemas na região.
Dentre os relatos mais tocantes, está o das refugiadas em Inguchétia, fugindo da guerra na Chechênia
No capítulo “Iraque”, três reportagens: “Complacência mata” e “Trauma de empréstimo”, que saíram no Guardian Weekend em fevereiro de 2005 e janeiro de 2006, e “Desce! Sobe!”, da Herper’s Magazine de abril de 2007. Na primeira, Sacco acompanha soldados norte-americanos em campanha no Iraque, ainda naquele contexto pós 11 de setembro, em meio a estradas desérticas e o medo de ataques a bomba.
Na segunda, a história de Thahe Sabbar e Sherzad Khalid, dois empresários iraquianos que processaram Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos EUA. Detidos e torturados pelo exército norte-americano sem acusação de crimes, chamava a atenção um dos relatos: terem sido colocados em jaulas com leões em um antigo palácio de Saddam Hussein.
“Desce! Sobe!” ironiza a ordem dos responsáveis por um programa do exército dos EUA que visava “deixar em forma” recrutas da Guarda Nacional Iraquiana. Sacco mostra como os despreparados e inaptos iraquianos foram parar ali, entre militares sádicos. As três matérias somam 32 páginas.
“Imigrações” é um capítulo bem pessoal para o jornalista. O objetivo da reportagem, “Os indesejáveis”, que saiu na Virginia Quarterly Revien em 2010, era “falar do problema das migrações africanas para a Europa”. Joe Sacco nasceu em Malta, ilha que fica no Mar Mediterrâneo, comumente porta de entrada dos africanos que chegam de barco ao continente europeu.
Como é possível imaginar, malteses, insatisfeitos com os desafios e mudanças culturais, e africanos miseráveis, que eram literalmente presos ao chegar no país, passaram a se odiar. Novamente, Sacco explora muito bem os dois lados da história. Além de ter acesso direto às autoridades, aos africanos – nos campos e centros onde viviam – e aos locais.
Em “Complacência mata”, Sacco faz reportagem de guerra tradicional, acompanhando o exército no Iraque
Por fim, “Kushinagar”, no capítulo “Índia”, é uma reportagem de 30 páginas em três partes que saíram originalmente na revista francesa XXI n. 13, entre janeiro e março de 2011. Na matéria, o jornalista se debruça nos relatos dos mais pobres e famintos representantes da casta dos dalits, os “intocáveis”, no distrito de Kushinagar. O principal desafio foi a insatisfação dos grupos de castas tidas como superiores, que chegaram a expulsar a equipe de repórteres de uma das aldeias.
Após a conclusão de cada capítulo, a edição traz anotações do autor com alguns dos contextos editoriais das matérias.
Vale a pena ler?
De primeira, é fácil vislumbrar que boa parte dos conflitos e problemas relatados não só ainda existem como, em alguns casos, pioraram. É o caso, por exemplo, da Inguchétia, uma das regiões mais pobres da Rússia que herdou, desde o fim dos anos 2000, a violência que antes concentrava-se na Chechênia.
Embora algumas reportagens abordem temas recorrentes na mídia, como no caso da Palestina, do Iraque e da migração africana, os recortes de Sacco têm sempre forte interesse público e oferecem novos parâmetros para conhecermos cada situação. Invariavelmente, mostrando o lado humano e dando voz aos mais impactados.
Do ponto de vista jornalístico, Reportagens mostra Joe Sacco em sua afinação máxima. Apesar de ele ter o estilo de se posicionar frente as pautas, é possível ver o esforço para que a subjetividade pessoal não se transforme em preconceito. Sacco dá atenção honesta a todos os lados da história – há, nesse sentido, uma evolução se compararmos com Palestina (2021), primeira reportagem de fôlego do autor –.
A utilização da metalinguagem para mostrar como o repórter se inseriu no ambiente é interessantíssima e, por mais controverso que pareça, ajuda na famigerada objetividade jornalística, vez que nos aproxima da verdade dos acontecimentos. Oras, as informações e sua obtenção são frutos de um contexto, e saber como nos chegaram ajuda a avaliá-las.
Questões sobre a legitimidade do jornalismo em quadrinhos (JHQ) são otimamente discutidas pelo autor no prefácio. Reportagens é uma excelente HQ para conhecer, do ponto de vista humanitário, alguns dos principais e mais cruéis conflitos ao redor do mundo. São relatos da miséria, da ganância e dos absurdos da guerra. Uma aula de JHQ.
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Avaliação: Excelente!
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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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