Ranx de Stefano Tamburini e Tanino Liberatore (1978-1996) – Baú de HQs

Em 9 de Jan de 2024 • 12 minutos de leitura

Saiba tudo sobre um dos quadrinhos mais violentos de todos os tempos que criou as bases do cyberpunk em: Ranx de Stefano Tamburini e Tanino Liberatore

Ranx ou RanXerox é um ciborgue feito com uma máquina de Xerox roubada da universidade em uma Itália futurista, distópica e violenta. Com a adição de elementos bioeletrônicos e alguma inspiração subversiva em Frankenstein, o personagem pode se alimentar, se entorpecer, ter sentimentos e fazer amor.

Dois fatos marcam Ranx: o potenciômetro de agressividade quase sempre no máximo e a paixão por Lubna, uma garota que o usa de forma egoísta, seja para sexo ou para conseguir drogas. Os circuitos essenciais dele ficam no lugar do cérebro, muitas vezes destampados ou com tampos dos mais esdrúxulos.

Os principais responsáveis pela HQ, para maiores de 18 anos, são Stefano Tamburini no roteiro e Tanino Liberatore na arte, super-realista. Com RanXerox, a partir de o fim dos anos 1970, eles revolucionaram os quadrinhos, o sci-fi e criaram as bases do cyberpunk.

RanxContexto histórico da publicação

Inicialmente, a criação de RanXerox se dá pelas mãos de Stefano Tamburini. Tanto no roteiro quanto na arte, P&B, com forte veia underground, do “faça você mesmo” e da contracultura.

O contexto político é complexo. Internacionalmente, a geração flower power dos hippies vai dando lugar ao niilismo dos punks. Na Itália, o ano de 1977 marca simbolicamente o fim do capitalismo industrial e o surgimento da revolução microeletrônica e da Era da Informação. Com isso, os anseios das massas e dos “revolucionários” também mudaram.

Crescentes acordos surgiam entre Democrazia Cristiana e Partito Comunista Italiano. Se os sindicatos e partidos políticos da esquerda tradicional tinham considerável acomodo na máquina pública daquela década, o Movimento del ’77 traz a insatisfação de jovens universitários e trabalhadores com o establishment.

Antes, era relativamente fácil entender as demandas dos grupos políticos da esquerda, exemplificadas nas organizações e relações de trabalho justas. Porém, um marco de 1977 é que aqueles jovens não tinham uma hierarquia tão determinada e os desejos eram plurais, embora no geral alinhados.

A Cannibale surge no contexto cultural do Movimento del ’77. Na foto, as edições #3, #4 e #6, de 1978 e 1979.

Ainda assim, é possível destacar anseios como a busca da qualidade de vida e a recusa do trabalho industrial para se ter mais tempo de ócio e cultura. Também havia a desesperança com a falta de perspectiva de futuro e com o autoritarismo das instituições – inclusive da esquerda, criticadas pelo grupo. Não à toa, a repressão ao Movimento del ’77 partiu de todos os lados da política tradicional. Ações na área de educação serviram de estopim para a revolta.

Enquanto o Estado atacava os estudantes com violência, a mídia ou silenciava ou seguia a linha de generalizar os universitários como terroristas – alguns partiram para a luta armada na Brigada Vermelha –. Rádios livres, revistas undergrounds, panfletos e quadrinhos independentes passaram a ser um prato cheio para a juventude criativa se manifestar.

As linhas acima são um apertado resumo do que aconteceu no período, mas nos ajudam a chegar em Ranx. Tamburini afirmou, em entrevista à Raitre em 1984, que o personagem foi inspirado em uma das batalhas entre estudantes e policiais, onde uma fotocopiadora era chutada pelos jovens. Ele pensou que ela poderia ser transformada em uma coisa mais bélica, em um robô, por um estudante de bioeletrônica.

A origem

Na primeira fase de Ranx, temos uma sequência de pequenas histórias, totalizando 28 páginas. A primeira, Rank Xerox, il coatto!, de 11 páginas, saiu na revista Cannibale (1978) #3, em junho de 1978. Tem início com uma briga de bar no 17º Nível entre o protagonista e um desenhista underground que sai com os dedos cortados, por conta de uma jukebox. As classes sociais são logo destacadas pelos níveis geográficos daquela Itália futurista dos anos 1980 – ainda estávamos em 1978 –. Quanto maior o número, maior a criminalidade e o caos.

Ranx pega o metrô para o 30º Nível, onde conhecemos Lubna, a namorada de 12 anos do ciborgue. De cara, em duas páginas, vemos um assassinato, uso de drogas e cenas de amor do malsoante casal. Pouco depois, Ranx chega na casa do próprio Tamburini, que explica o motivo de o ter construído: após a criminalização do “movimento”, era Ranx que andaria desapercebido pelos outros níveis, como um coatto – gíria italiana para um tipo característico da juventude de Roma que unia certa ostentação estética com rebeldia, sendo cool e ao mesmo tempo rude –. A ironia estava em que eles não causavam grande preocupação ao establishment, era uma rebeldia genérica.

O casal Ranx e Lubna, ainda na arte P&B de Tamburini

As bases do protagonista estavam bem apresentadas. Sequencialmente, temos Rank Xerox! na Cannibale (1978) #4, de 1978, e Lù rapita (Lubna raptada) na Cannibale (1978) #6, de 1979. Desde o início, a HQ chocou a opinião pública em geral. Todavia a intenção era essa: romper com o conservadorismo de forma traumática.

Ranx em Nova York

Aqui, a história que revolucionou o personagem e ajudou a criar o cyberpunk. A moral de Ranx era a mesma, mas a trama mais longa e com a arte super-realista de Tanino Liberatore. Foi a mistura definitiva de enredos extremos com desenhos virtuosos que marcaram a HQ.

Ranx em Nova York saiu originalmente em cinco partes na Frigidaire (1980) #1, #3, #8, #9 e #10 entre 1980 e 1981, totalizando 41 páginas. A revista, também de vanguarda, era muito ligada ao aspecto estético da arte. Já no Brasil, mais de seis anos depois, entre 1988 e 1989, a lendária revista Animal (1988), da VHD Diffusion, foi a responsável pela estreia de Ranx, com as mesmas cinco porções da HQ.

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Com a equipe criativa que ganhou o mundo, Tamburini e Liberatore, Ranx saia originalmente na Frigidaire e, no Brasil, na revista Animal. Na foto, Frigidaire #1 e #7, de 1980 e 1981, e Animal #1 e #5, de 1988 e 1989.

Na trama, por meio de um amigo, Ranx e Lubna conhecem Raniero, um pintor ricaço. O objetivo do artista era dos piores: sequestrar a garota e chantagear o ciborgue para assassinar Giorgio Fox, mais duro crítico de arte de Roma, 17 anos, e filho do próprio Raniero.

É claro que haverá muita violência e Ranx se voltará contra Raniero. Porém, em um segundo momento, descobrimos que Lubna está em Lampedusa. Ela acaba conhecendo um empresário milionário de Nova York que quer financiar o novo musical de Fred Astaire e, no caso, colocará Ranx no papel principal. Imagine esses consortes nos ambientes do show business norte-americano!

Feliz aniversário, Lubna!

O empreendimento de Ranx e Lubna não dá certo e ambos estão pobres em Nova York – no ano ficcional de 1988 –. Após um mês, ela está trabalhando como babá e ele como taxista. Timothy, um sujeito obsessivo que coleciona álbuns com fotos de acidentes de carro, divide o apartamento com o casal.

A garota, no auge de ser insuportável, expõe aos berros sua insatisfação com a vida à dois e ameaça deixar Ranx se, no dia seguinte, ele não der um “p*** presente de aniversário”. Aliviados com a saída da jovem para o trabalho, Ranx e Timothy pegam o taxi para dar um rolê. A partir daí, veremos a dupla se envolvendo em aventuras nas boates e festas da cidade, das mais undergrounds à mais excêntrica, organizada pelo milionário Enogabalo.

É ele que propõe a Ranx participar de um remake da corrida de bigas do filme Ben-Hur (1959), mas com carros modificados e até a morte, para a criação de um clipe musical. Claro, por uma boa quantia de dinheiro que resolveria – ou não – os problemas dele com Lubna. É engraçado perceber os ataques de Tamburini a futilidade e a pseudointelectualidade da elite cultural.

Essa história foi publicada inicialmente em quatro partes na Frigidaire (1980) #14, #17, #19 e #21, em 1982. No Brasil, saiu na Animal (1988) entre os números #15 e #18, em 1991.

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A arte super-realista de Liberatore e a pancadaria são marcas registradas de Ranx

Be Bop a Lubna

Em Be Bop a Lubna, publicada originalmente na Frigidaire (1980) #29 e 31 em 1983, conhecemos o grupo de amigas de Lubna. É uma história mais curta, 14 páginas, e com toque de filme trash de terror dos anos 1980.

O ano é o de 1989, o seguinte a história anterior, em que Ranx consegue o dinheiro para voltar a Roma. No rolê das garotas, Carmen, de apenas 3 anos, vai buscar uma encomenda para seu irmão, o criminoso Carlone, no apartamento de Romeo. Enquanto as meninas se entrosam, a pequena vai ver o que tem em uma porta e descobre Giorgio, um monstro de duas cabeças, irmão do dono da casa e fã do Elvis Presley.

Giorgio fica enfurecido com a interrupção da música Be-Bop-A-Lula. Com gritos de “morra, punk!”, descola até uma serra-elétrica para perseguir todos que estão no local. A carnificina vai até uma estação do trem…

I, Me, Mine Incorporated

Lubna finalmente cumpre a promessa de deixar Ranx e encontrar um amante rico. Enquanto o protagonista sofre e a procura há dois meses, ela está com o diplomata japonês Marsi Roentgen, de 16 anos, em um hotel do 10º nível.

Descobrimos que ela é filha de Thomas Limbo, um influente empresário dono do Edifício Limbo, arranha-céu de 120 andares no 2º Nível. Enquanto a jovem vai pedir a ajuda do pai para se desvencilhar da perseguição de Ranx, surge uma intriga internacional.

O presidente dos EUA está desforme pela doença fúcsia e sobreviverá, no máximo, cinco dias. O secretário de Estado McManara o mantém escondido em um laboratório secreto, enquanto negocia com Thomas o envio do antídoto, cuja fórmula só ele tem.

A história, no entanto, para sem conclusão. Tamburini é encontrado morto por overdose em seu apartamento em abril de 1986. As 16 páginas criadas saíram na Frigidaire (1980) #48, #59, #60 e #61 entre 1984 e 1985.

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A última história do ciborgue não tem Tamburini, mas Chabat honra o título de forma apoteótica

Amém

Em 1995, finalmente é publicada a continuação direta de I, Me, Mine Incorporated, na revista francesa L’Écho des savanes (1972) #140 a #144, da editora Glénat, com 29 páginas. Por aqui, leríamos a HQ em três partes na Heavy Metal Brasil (1995) #12 a #13, em 1997.

O roteirista da história foi o francês Alain Chabat. Na trama, Ranx, capturado por Timothy no Edifício Limbo, é transformado numa espécie de padre, tem todas as memórias de Lubna retiradas e recebe o antídoto da doença do presidente norte-americano por todo o seu corpo. O plano é que o ciborgue chegue em três horas em Washington e o Sr. Limbo receba 50 bilhões de dólares como pagamento.

Mas o diplomata japonês Marsi, junto de um grupo de agentes, está envolvido em uma tentativa de golpe para impedir que o antídoto chegue aos EUA. Mesmo não sendo o caminho previamente divulgado, Ranx é perseguido durante a viagem de navio, onde ganha uma espécie de sidekick, Ciro, maquinista que aceitará o discurso messiânico dele. No caminho, a dupla se envolverá até em uma espécie de comunidade religiosa inspirada na Peoples Temple, do assassino em massa Jim Jones.

Chabat soube manter o estilo de roteiro corrosivo e violento de Tamburini, com piadas pastelão e todos os elementos clássicos. Mas trouxe proporções apoteóticas para as cenas de ação – o que o fechamento da história merecia –, além de aproveitar o passado do título, como na boa utilização do personagem Romeo – de Be Bop a Lubna – e na referência ao episódio em que a jovem fica apenas com a cabeça de Ranx, servindo como rádio.

Ai, robô!

A HQ é curta, seis páginas, publicada na L’Écho des savanes (1972) #12 em janeiro de 1993, com roteiro de Jean-Luc Fromental. Nela, Lubna é entrevistada em um programa de televisão pelo lançamento de sua autobiografia, “Ai, robô!”. Na ocasião, ela conta a origem de Ranx, quando ganhou uma fotocopiadora roubada de três amigos. Dada a insatisfação dela de início, eles a transformam no famigerado ciborgue.

Ou seja, trata-se de um pequeno retcon. Válido, pois apesar de retirar um pouco do contexto do Movimento del ‘77, temos a origem atualizada e, pela primeira vez, com arte de Liberatore.

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Capa do álbum The Man From Utopia (1983), do Frank Zappa. Ou seria Ranx Zappa?

Vale a pena ler Ranx?

É preciso ter estomago para ler RanXerox. E senso crítico apurado, pois o quadrinho faz toda aquela violência – física e psicológica – extrema e banalizada parecer algo “normal”, ao menos naquela realidade. Não deixa de ser uma crítica ao que aprendemos a nos acostumar com a sociedade.

Stefano Tamburini foi um revolucionário de vanguarda ao criar as revistas Cannibale (1978) e Frigidaire (1980) com sua turma – que inclui Massimo Mattioli, Filippo Scozzari e Andrea Pazienza –. RanXerox, com muito cinismo, é um dos principais emblemas desse sucesso. Tanto que chegou às maiores revistas undergrounds do mundo, como a espanhola El Víbora (1979), a norte-americana Heavy Metal (1977) e, claro, a brasileira Animal (1988). Inspirou até disco do Frank Zappa, com capa feita pelo próprio Liberatore, que dispensa comentários.

Ranx não é um personagem normal e não está lá para normalizar comportamentos perversos. Pelo contrário. Ele responde à altura, digamos assim, a própria perversidade social contida nos políticos corruptos, nos empresários gananciosos, nos fanáticos religiosos, sobrando até para a elite cultural, os artistas pop, o consumismo alienado, o conservadorismo e o choque de gerações daquela Itália. Pasmem, a mocinha é egoísta e fútil. E Ranx não é herói. Está mais para o resultado do que tenta destruir – literalmente, no mínimo com socos e pontapés –. É espelho.

Sim, Ranx é um quadrinho niilista que escancara alguns males do mundo e é um importante registro dessa geração sem perspectivas nos anos 1970 e 1980 – reflexo é a própria morte de Tamburini pela heroína, então droga da moda –. Ironicamente, seus criadores acharam a melhor e mais criativa forma de combater tudo isso: a arte.

Conrad e Comix Zone! publicaram todas as HQs de Ranx em edição única em 2010 e 2022, respectivamente.

*O autor desta matéria e o Ultimato do Bacon não compactuam ou incentivam quaisquer comportamentos violentos realizados pelos personagens deste quadrinho.

Gostou do texto? Leia outras matérias do David Horeglad (HQ Ano 1) para o UB!

PETER PANK (2023) – O ULTIMATO

O SISTEMA (2023) – O ULTIMATO

PINÓQUIO (2022) – O ULTIMATO

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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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