O fato de a ficção proporcionar lampejos de sentido e ressignificação é algo de valor ímpar para qualquer pessoa, nerd ou não, que se conecte a obras de fantasia ou identifique nelas algo que pode ser tomado como seu – é o poder de apropriação que a arte nos oferece.
Missa da Meia-Noite, série disponível na Netflix, é um curioso caso de narrativa audiovisual baseada no gênero terror que se utiliza de elementos sobrenaturais para levar o espectador às mais profundas reflexões sobre a vida, morte, fé, fanatismo, hipocrisia, religiosidade e cegueira espiritual.
Mais do que uma análise de conteúdo técnico (sonoplastia, fotografia e produção), o Ultimato tentou analisar os conceitos, metáforas e o tripé de personagens Bev Keane, Paul Hill e Riley Flynn, que representam aquilo que pode ser visto na sociedade, tais como estereótipos ou rótulos que revelam um lado não tão belo da religião.
A Trama de Missa da Meia Noite
Criada por Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill), a Missa da Meia-Noite utiliza sutilmente o terror como elemento narrativo para contar a história de uma comunidade isolada do mundo, um microcosmo centrado numa pacata ilha onde uma pequena população ordinária vive da fé e trabalho sem grandes expectativas. Porém, tudo muda com a chegada do Padre Paul Hill (Hamish Linklater) que, entre acontecimentos aparentemente milagrosos e eventos inexplicáveis, reacende o fervor religioso da comunidade.
Ilha Crockett (população: 127 habitantes), o microcosmo de um local isolado do mundo
A série se esmera nos dramas dos personagens da ilha Crockett, afetados pela presença e força de espírito de um padre que reaviva a fé daquelas pessoas através de suas enérgicas pregações. Sua eloquência e retórica são tão inspiradoras que fazem com que até mesmo o mais cético de todos comece a acreditar nos milagres e curas realizados pelo sacerdote (porém, há um preço muito alto a ser pago). E o que ele esconde das pessoas? Como se dão esses milagres? Essas questões acompanham o espectador até o final da série, mantendo todos sob tensão.
Além disso, existe na figura da ilha o microcosmo de uma cultura social isolada do mundo (alguns até viajam para fora da ilha, porém, os costumes e a vida de fé e abnegação estão entranhados nas mentes dos moradores). A ilha, enquanto metáfora, demonstra que a religião retira e separa os indivíduos do mundo carnal e pecaminoso – os elementos da obra fazem o espectador considerar tal hipótese, afinal, aquelas pessoas podem até sair da ilha, mas a ilha está dentro deles.
Hipocrisia e Religiosidade
A série se aprofunda na malignidade dos seres humanos, nos fazendo crer que a maldade nos corações dos homens é algo a ser visto como um horror, por vezes, maior do que qualquer monstro ou ser oriundo das trevas. Haja vista, as atitudes vis praticadas por aqueles que detém certos poderes eclesiásticos e que deveriam (em tese) dar bom testemunho de fé e amor ao próximo.
Bev Keane (Samantha Sloyan) é uma religiosa que conhece cada detalhe da Palavra de Deus, uma mulher fervorosa altamente doutrinada na fé cristã, porém, usa versículos da Bíblia como arma para perseguir e ofender bêbados, ateus e pessoas pertencentes a outro estilo de vida, cultura ou religião.
Há uma cena em particular, em que ela derrama seu desprezo por um dos personagens devido a ele pertencer à religião muçulmana (islamismo), algo marcante e que demonstra como Bev é a caricatura de mundo onde pessoas aparentemente fervorosas destilam ódio, preconceito e ataques em nome de um falso evangelho criado em suas mentes mesquinhas.
Bev Keane, a caricatura da hipocrisia humana
Utilizando versículos bíblicos na ponta da língua para benefício próprio, a personagem segue ferindo pessoas pelo caminho sem se importar com seus sentimentos, apontando suas falhas segundo uma visão distorcida da Bíblia – ao invés de utilizar a Palavra para confrontar a si mesma, para arrancar “a trave dos seus olhos para, depois, retirar o cisco dos olhos alheios”, conforme o sermão pregado por Jesus Cristo no Monte (Mateus 7:1-5).
“Eu não aguentava ficar naquela sala ouvindo aquelas besteiras nem mais um minuto. Parece um tipo de senso de superioridade que é exclusivo de uma certa crença”, critica uma das personagens de Missa da Meia-Noite.
A hipocrisia, um tipo de horror mais grotesco do que o próprio monstro da série, nos faz perceber como certas pessoas que se acham detentoras de uma fé ou verdade, se achem maiores do que os outros e coloquem pesados fardos sobre os seus ombros.
A Missa provoca o espectador mostrando que, mesmo dentro das searas religiosas, há aqueles que causam mal aos outros sob pretextos ligados à fé (as guerras santas, em nome de uma determinada religião ou um deus, provam exatamente isso).
Bev pode ser comparada a um fariseu, pessoas descritas por Cristo como símbolo da hipocrisia religiosa. Esses “mestres” possuíam estreita observância das escrituras bíblicas e leis, porém, não praticavam os atos de fé, justiça e misericórdia que tanto estudavam.
A personagem representa a metáfora de um povo cheio de aversão contra aqueles que pensam diferente, onde convertidos (ou seriam convencidos?) atacam e coagem pessoas – lembrando que no mundo real, vários são os que agridem moralmente, verbalmente ou fisicamente pessoas com estilos de vida e conduta diferentes daquilo que é visto como normativo para eles.
Não se iludam com esse olhar plácido
A polarização, globalismo e intolerância também favorecem para o clima de beligerância religiosa instalada no mundo, fazendo com que os religiosos sejam vistos como pessoas alienadas, agressivas e ignorantes.
Mike Flanagan, diretor da série, expõem as feridas da carne fazendo uso dos elementos do cristianismo (de vertente católica) para debater, discutir e até mesmo colocar em xeque as ações de determinadas pessoas que, por vezes, escondidas por baixo da pele de um cordeiro, podem ser lobos ou monstros piores do que aqueles que tentam combater.
Subversão dos Valores Bíblicos
Numa espécie de subversão da Palavra Bíblica canonizada nas Escrituras Sagradas, Flanagan tenta subverter os fatos cristãos (lembrem-se, Missa da Meia-Noite é uma obra com vasta temática envolvendo catolicismo) desenvolvendo uma nova narrativa dos acontecimentos narrados na Bíblia.
Explico: na Palavra Sagrada, mais precisamente, na carta aos Coríntios, o Apóstolo Paulo recebe uma revelação divina durante seu trajeto na estrada de Damasco, onde é tocado por Deus e, assim, passa a seguir os mandamentos cristãos – muitos acreditam ser um encontro real com o divino, em que Deus muda completamente sua forma de pensamento.
Padre Paul Hill, o ápice da cegueira espiritual
Em Missa da Meia-Noite, vemos a encenação da mesma história, porém, com um viés totalmente subversivo do original, onde o contato com o divino é substituído pelo profano – Paulo (o da Bíblia) é tocado por Deus na estrada de Damasco, enquanto que Paul (o da série) é tocado por algo diabólico. Ao ver um milagre acontecer em sua própria vida, o padre dá crédito ao estranho ser que o salvou através do novo sangue (ou nova vida).
A Bíblia, aliás, afirma que “não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz” (2 Coríntios 11:14) – como se vê, desde os primórdios, o diabo ilude aqueles que possuem corações altivos e desejos mundanos.
Para Paul Hill, o ser com o qual ele tem contato é visto como um anjo do bem (lembre-se, o diabo está nos detalhes) e toda aquela situação de espanto e medo de algo incompreensível, irracional ou até mesmo bestial, faz com que ele acabe por deificar tal ser, enxergando aquela criatura medonha como algo divinizado.
Inclusive, sangue e rejuvenescimento (ou renascimento, como queiram) são elementos presentes no contexto de outro ser da escuridão e das trevas, acostumado a atacar os pescoços de suas vítimas, matando-os ou recompensando-os com a vida eterna.
O mal
Isto possui total relação ao que acontece a Monsieur Pruitt (antigo sacerdote da ilha), ligando-o a Paul Hill de uma forma muito bem articulada. Ambos, Paulo (no mundo real) e Paul (na ficção) passam a ver as coisas sob uma nova perspectiva, entendendo tal experiência como um encontro com um ser sobrenatural.
Porém, a cegueira espiritual é tamanha que os personagens da Missa da Meia-Noite acabam interpretando o mal como bem, numa subversão de valores que causa desconforto àqueles acostumados com a Verdade Bíblica.
Percebem a sacada? Como a analogia da Missa da Meia-Noite tem, por vezes, um caráter subversivo e de deturpação daquilo que é canonizado no mundo real? Não que seja ruim ou demérito, afinal, fez-me pensar na conhecida passagem bíblica que relata a trajetória de Saulo pela estrada de Damasco (Atos 9), em que tem uma revelação divina que o faz adotar outro nome, Paulo, e uma nova missão de levar tal maravilhosa graça a outros, seus fiéis.
A cegueira espiritual dos habitantes da ilha Crockett é tão grande que os faz observar algo intrinsecamente maligno e demoníaco como benévolo graças ao selo de qualidade colocado pela figura do Padre Paul Hill – outro que também, obscurecido pelo fanatismo cego, crê que um ser das trevas seja um anjo de luz.
Desgraça, Desapontamento e Redenção
Riley Flynn (Zach Gilford), terceiro tripé dessa análise, é um personagem que merece atenção devido seu comportamento ser semelhante àqueles que, em algum momento na vida, se desencantam com a fé ou que, feridos “em nome de deus”, ficam desapontados com a religião e abandonam as práticas cristãs bem como a comunidade à qual pertenciam.
Riley Flynn, desencantado com a fé
Atormentado todas as noites por sonhos recorrentes de uma moça que ele matou durante um atropelamento e do qual foi preso por quatro anos, Riley sofre de uma angústia sem fim e questiona por que Deus, em toda Sua onipotência, não pôde impedir tal evento – é o ponto de divergência entre o personagem e sua relação com o espiritual, que servirá como fio condutor de sua jornada de descobertas, redenção e sacrifício demonstrando como a via crucis de um ser humano pode transitar da devoção fervorosa à descrença total.
É possível que Riley represente o ceticismo daqueles que observam as obras espirituais como algo puramente científico ou empírico, devendo ser submetido a análises qualitativas para determinar se são frutos divinos ou ações da natureza. Diferente dos crédulos, ele representa a desconfiança em relação às zonas do além, uma mentalidade científica que analisa as situações por meio do empirismo.
Inclusive, na Missa da Meia-Noite, é o ceticismo de Riley (poderia até mesmo dizer ateísmo) que faz com que perceba o grande mal ali presente naquela micro sociedade reclusa que é a ilha – ainda assim, visto por ele como próprio de uma dimensão terrena e nada mais que isso.
Mas, ainda é fato que há aqueles que possuem uma tremenda fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – e em todo o poder espiritual que emana do céu e atua na história do mundo desde os primórdios. Quero dizer com isso que, a Missa da Meia-Noite cumpre o propósito de dialogar com aqueles que, como Riley, carecem de restauração, redenção e busca por perdão de seus atos. A Missa pode ser observada como uma obra que traz grandes reflexões sobre a vida humana, fazendo com que o mais desgraçado de todos encontre redenção no divino.
Um homem em busca de redenção
Ao relatar suas próprias experiências, Riley é identificado pelo espectador como alguém próximo de nós, gerando catarse e ressignificação do ser humano – principalmente, daqueles que vivem pela fé e que, em algum momento da vida, se perdem no mundo e seus desejos (fama, dinheiro e luxúria, por exemplo).
Interessante mesmo é notar, não à toa, o momento de epifania de Riley enquanto que uma música é tocada ao fundo – para aqueles há mais tempo nas igrejas, irão se lembrar de “Mais perto quero estar” (famoso hino cristão que fala da união do homem com Deus após a morte), momento brilhante e encantador em que Riley conversa abertamente sobre suas angústias e medos, se libertando do cativeiro em que vivia.
O Horror Presente na Bíblia
Os elementos de terror escolhidos para a Missa da Meia-Noite são uma contribuição importante e demonstra que a religião também causa medo, mesmo que as pessoas tentem tornar as histórias bíblicas mais palpáveis ou suaves – deve-se ficar claro que toda a beleza da vida religiosa é apenas uma parte da história.
Flanagan utiliza de forma bem específica e sutil o horror para dizer que a religião não é algo tão belo e, de fato, alguns trechos bíblicos podem ser descritos como o terror extremo. As dez pragas do Egito, sacrifícios ritualísticos, a queda de Sodoma e Gomorra destruída por fogo caindo dos céus, inferno eterno, ranger de dentes e bestas apocalípticas que saem da terra e do mar são só algumas das coisas contidas na Bíblia que fazem qualquer pessoa gelar a espinha.
Pintura que representa demônios do inferno Coppo Di Marcovaldo
Em entrevista, Flanagan diz: “há uma enorme quantidade de horror na religião […] uma enorme quantidade de monstros, demônios, rios se transformando em sangue, pilares de fogo […] acho que de várias maneiras, a religião – todas as religiões – se utilizam de duas coisas: um desejo de vida após a morte e o medo de tudo mais no mundo […] criamos deuses para explicar terremotos e vulcões […] quando estamos com medo, os deificamos. Então, o horror, eu penso, é produzido na fábrica da religião”.
Certo de que podem receber curas, milagres, libertações e vida próspera (tudo “pintado” de forma angelical) alguns seguem religiões ou doutrinas sem se ater ou reconhecer as partes escatológicas da Bíblia e que dizem respeito à história da humanidade, conforme citadas acima.
E aí, sim a série pode dialogar com as pessoas através por meio da ficção, mostrando como alguns religiosos se aproveitam de determinadas “visões” para alcançar fiéis ora incautos, ora ingênuos, ora cegos espiritualmente e que aceitam tudo como certo e santificado.
Veredito
A Missa da Meia-Noite é uma produção inquietante, pois mesmo que esteja alicerçada no gênero terror, não utiliza do mesmo como muleta narrativa. O ineditismo se encontra no fato da série utilizar medos e horrores como fio condutor de uma história recheada de dramas e conflitos entre os personagens – xenofobia, solidão, desespero, vícios, hipocrisia, opressão, maniqueísmo e receio da finitude da vida, além de várias outras reflexões vividas na efemeridade da vida moderna.
E que todos saibam que não há nada pior do que aqueles que fazem mal uso da fé e de maneira hipócrita tentam enganar, impor e abusar dos outros por meio da religião – que o diga Bev Kane, a representante maior da hipocrisia religiosa na série. Demonstrando, inclusive, que o maior terror de todos não está necessariamente na figura de monstros e/ou demônios (deve-se temê-los, com certeza) mas na maldade humana, nos corações caídos de homens que fazem o mal sem cessar – tais coisas das quais deve-se aterrorizar dia após dia, noite após noite.
Outro ponto a ponderar, é que o ser humano se sente confortável em se identificar nas obras de ficção que os levem para além do pensamento comum e a Missa cumpre muito bem o seu propósito, nos fazendo repensar nosso papel.
Pelo que é visto na série, todas as religiões e formas de pensamento humano desejam conferir um momento que seja de paz ao coração dos homens e mulheres neste mundo vil, caótico e desesperado. Tanto o Padre Paul quanto Riley Flynn tentam, cada um a seu modo, vencer seus pecados e procurar uma vida que seja a melhor possível dentro de seus microcosmos pessoais.
Missa da Meia Noite está disponível na Netflix!
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Avaliação: Excelente!.
https://www.youtube.com/watch?v=cspyDWJfly8
Créditos:
Texto: André ‘Brasuka” Roberto – @Comunicafic
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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