Conheça, em quadrinhos, a vida do saxofonista mais lembrado da história do jazz: Coltrane
Existem muitas formas de escrever – ou desenhar – uma biografia. Quando o personagem tem diversos feitos ou uma vida longa, é comum o autor selecionar um recorte. Não é isso que o italiano Paolo Parisi faz em Coltrane (2009), publicado no Brasil em 2016 pela editora Veneta.
A HQ relativamente curta – 128 páginas de texto rápido e fluido – se estende por toda a vida de John Coltrane (1926-1967). Como o jazz e o próprio protagonista, a história não é apresentada de maneira fácil, cronológica.
Parisi vai pincelando fases da vida do saxofonista que têm sequência no decorrer dos quatro capítulos. Cada um com o nome de uma das faixas de A Love Supreme (1965). A ideia do autor é que a audição e a leitura se conectem.
Caso queira ir entrando no clima, segue o álbum no Spotify.
Já li alguns quadrinhos cujo autor criou playlists para acompanhar a leitura. Mas uma HQ feita para se encaixar em um álbum clássico foi a primeira vez. E preciso dizer: funciona! A experiência é bastante agradável.
Qual o enredo de Coltrane?
“No princípio era o som.” O quadrinho começa com esta frase e a imagem de um gongo. Coltrane treinava horas e horas dia e noite. Então não há muito espaço para os dramas da vida dele. Estão lá, mas de certa forma encobertos pela música.
Vemos os dois casamentos do saxofonista, a filha adotiva, o vício em heroína, o racismo e a doença que o levou embora. O fato de nada disso vir distante do jazz diz muito sobre o personagem.
No primeiro capítulo, “Acknowledgement”, conhecemos o primeiro contato de Coltrane com Dizzy Gillespie na Filadélfia, em 1949, apresentados por Jimmy Heath. De lá, pulamos para 1960, onde McCoy Tyner lê para o sax tenor uma matéria com críticas pesadas às suas mudanças musicais. “Em seus solos se entrevê os vestígios da compulsão neurótica e o desprezo pelo público.”
Mesmo que em poucos traços, a ambientação do jazz é muito bem desenhada por Parisi
E assim vamos passando por momentos distintos, como Miles Davis o presenteando com o Soprano Selmer que comprou de um traficante em Paris, o Newport Jazz Festival de 1958 – quando fazia parte do quinteto responsável por gravar Kind Of Blue (1959) – e sua infância pobre na Carolina do Norte, em 1936.
Lá descobrimos que a música vinha de berço. Seu avô era um pastor metodista e sua mãe tocava órgão na igreja. De acordo com a narrativa, sempre havia música no rádio e instrumentos em casa.
Foi depois da morte dos avós e do pai, na mesma época, que Coltrane não largou mais o instrumento. Era um refúgio para a solidão e a tristeza. E talvez dessa fuga pela música percebamos o motivo dela se sobressair em relação aos dramas da vida em toda a HQ.
Coltrane e A Love Supreme
A obra de John Coltrane que guia a biografia em quadrinhos é A Love Supreme. O álbum, lançado em 1965 pela Impulse! Records, foi gravado em uma sessão no dia 9 de dezembro de 1964, no Van Gelder Studio em Englewood Cliffs, Nova Jersey.
Da mesma forma que Parisi, começa com o badalar de um gongo. Além do sax tenor, estavam McCoy Tyner no piano, Jimmy Garrison no baixo e Elvin Jones na bateria.
Para as composições, Coltrane trouxe influências das religiões africanas e asiáticas e, obviamente, seus ritmos e notas. A sessão foi dividida em quatro faixas: “Acknowledgement”, “Resolution”, “Pursuance” e “Psalm”, em pouco mais de 30 minutos.
Elas podem ser interpretadas como um caminhar espiritual. O reconhecimento, a resolução, a perseguição e, por fim, o agradecimento pelo som e pela vida em forma de salmo.
E o salmo, criado por Coltrane, é lido na quarta faixa pelo próprio saxofonista, mas apenas com seu instrumento. Uma recitação sem palavras. Apesar de toda essa influência, Coltrane não se distancia do jazz – mesmo que aqui falemos dos difíceis jazz modal e free jazz –.
A escolha do álbum para a HQ não poderia ser mais apropriada. Dá para pensar que toda a jornada do saxofonista, toda essa obsessão pela música e pelo conhecimento – que incluía as religiões, a física, a astronomia e a matemática – serviriam para o arremate de A Love Supreme.
Grandes momentos do saxofonista, como a gravação de “A Love Supreme”, são retratados
Muitos o consideram sua obra prima. Coltrane faleceria apenas três anos depois, mas na época da gravação já havia superado o vício em álcool e heroína.
E aqui vai uma dica: se você quer começar a ouvir jazz, talvez alguns álbuns de cool jazz, bebop e hard bop sejam mais palatáveis para entrar nesse mundo. Do próprio Coltrane, Blue Traine (1958) – que inspirou a capa da HQ –, Giant Steps (1960) e My Favorite Things (1961) são ótimas pedidas. Ou ainda Kind Of Blue (1959) do Miles Davies com Coltrane no sax tenor.
Vale a pena ler?
É uma leitura para um público segmentado. Que curte jazz ou, no mínimo, tem vontade de explorar esse universo.
Mesmo assim, pode valer a pena conhecer a história de um homem que era devotado à música. Que conseguiu unir a razão matemática dos complexos compassos do jazz a um feeling que vinha de sua crença em um Deus transcendental, que sobrepunha religiões. Coltrane, aliás, dizia acreditar em todas.
O trabalho de pesquisa de Parisi, com uma considerável bibliografia e consulta em entrevistas, faz qualquer fã de jazz se animar com a publicação. Segundo o autor, a principal referência foi o livro John Coltrane: His Life and Music (2000), de Lewis Porter.
Com relação à narrativa, vemos um apanhado de pequenos recortes da vida de Coltrane irem se transformando em um panorama muito interessante de sua história. Surpreendentemente, ao fim da leitura, parece que o quebra-cabeça se fecha.
Dentre as amizades de Coltrane, a com Miles Davis é uma das mais impactantes
Sobre a arte, é muito legal perceber como, em poucas linhas, Parisi consegue identificar personalidades do meio, incluindo Miles, Elvin Jones e Eric Dolphy.
A única passagem que senti falta foi a amizade de Coltrane com o internacionalmente famoso músico indiano Ravi Shankar, que inclusive foi determinante para o jazz modal e para a criação de A Love Supreme. Porém, não há como saber se o acréscimo quebraria a narrativa.
Ao menos, a influência do indiano foi desenhada em um dos momentos mais bonitos do quadrinho: John, o filho Ravi – uma homenagem ao mestre – e a esposa Alice, grávida de Oran, curtem a família no chão da sala, em Long Island, com um disco de improvisações de Shankar ao lado.
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Avaliação: Ótimo!
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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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