Martha Batalha – UB Entrevista

Em 6 de Mar de 2020 • 16 minutos de leitura

Autora do livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão fala sobre a adaptação da obra para os cinemas e a importância dessa discussão para o contexto social da atualidade

por Alexandre Baptista / foto de capa: Jorge Luna

 

Em 21 de fevereiro, às vésperas do carnaval no Brasil, o Ultimato do Bacon teve a chance de conversar com a autora Martha Batalha, direto de Los Angeles, sobre o livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), a adaptação do diretor Karim Aïnouz para os cinemas, A Vida Invisível (leia nossa crítica aqui), pré-indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional este ano e sobre o contexto social atual.

Confira!

Obs.: A entrevista contém partes importantes do enredo do livro e do filme. Caso não queira saber nenhum detalhe, leia a entrevista após conferir as obras.

Confira também a matéria Dois filmes nacionais contra o machismo e nossa entrevista com Karim Aïnouz, diretor do longa.

 

Ultimato do Bacon – E aí pessoal, eu sou o Alexandre Baptista e esse é o Ultimato do Bacon Entrevista, o programa de entrevistas do Ultimato do Bacon. E hoje a gente tá com a presença especialíssima de Martha Batalha, pernambucana criada no Rio de Janeiro que é repórter, escritora e autora dos livros Nunca Houve um Castelo, que saiu em 2018 e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão de 2016, esse que foi publicado em mais de dez países e adaptado recentemente aos cinemas pelas mãos do diretor Karim Aïnouz no ano passado, em 2019. O filme foi indicado na pré-lista do Oscar de Melhor filme Internacional. Acabou não passando para os últimos cinco indicados, a gente tava com uma competição acirrada esse ano. Mas não deixou de fazer um belo esforço em chegar ali ao Oscar, coisa que para o cinema nacional é muito significativo. Bom dia Martha, tudo bem com você? Obrigado, primeiro, pela sua presença com a gente.

Martha Batalha – Oi Alexandre, muito obrigada por me ter aqui, tudo bem! Espero também que esteja tudo bem com você.

UB – Obrigado. Antes de mais nada: parabéns pela lindíssima obra. Eu tomei contato com ela, confesso que, através do filme… mas eu achei ela de uma delicadeza incrível. E ela é visceral, né? Uma obra visceral.

MB – Sim.

UB – Pelo menos para minha percepção. Também, parabéns pela indicação ao Oscar porque, bem ou mal, é um texto que foi [criado] a partir da sua obra. Você chegou a ver o filme, conferiu ele, gostou da obra?

MB – Sim, gostei. Eu vi o filme aqui em Los Angeles e fiquei muito emocionada… é muito, muito estranho, né? A gente vê os personagens que a gente criou, numa tela de cinema, andando de um lado para o outro, falando. O filme é um pouco diferente do livro, o que para mim não teve o menor problema. O filme tem uma marca muito forte da estética do Karim Aïnouz.

Como a minha agente colocou, que eu acho que é de uma forma perfeita, eu escrevi uma tragicomédia e ele fez um melodrama. Mas o filme é lindíssimo. É um daqueles que a gente sai do cinema e ele fica dentro da gente por um tempo. É difícil se descolar da história.

 

A autora Martha Batalha. [foto: Jorge Luna]

 

UB – Sim, concordo plenamente. Você acabou de mencionar que para você, não houve um problema com as mudanças. Você teve alguma participação além do material de base ou não? Você só participou realmente no final, assistindo o filme fechado?

MB – Não, eu só assisti o filme fechado. Para mim tava muito claro, desde o começo, que eu não queria participar. Eu não queria ter nenhuma influência sobre o que o Karim fosse fazer ou sobre quem o Rodrigo fosse escolher – Rodrigo [Teixeira] é o produtor – para fazer esse filme porque em primeiro lugar, não é minha praia. Eu não entendo de cinema, não entendo de audiovisual.

 

Cena do filme A Vida Invisível (2019) de Karim Aïnouz, baseado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha.

 

Em segundo lugar, eu tenho uma carreira que eu quero que continue. E eu tinha um pouco de medo, porque esse meu primeiro livro fez muito sucesso e eu não queria ficar em torno desse livro por muito tempo.

Então eu tava envolvida em outros projetos, com outros personagens, outras coisas na cabeça. E eu sabia que, justamente pelo que eu falei assim, a minha estética, o meu jeito de ver as coisas – bastante diferente do jeito do Karim ver – eu não queria influenciar porque eu queria que ele tivesse total liberdade para fazer o trabalho dele. E na verdade, foi uma decisão muito acertada. Porque o filme é um filme muito bonito.

UB – Eu acho bacana esse seu comentário porque, pelo menos na minha percepção, o verdadeiro criador, ele tem esse desprendimento a respeito da própria obra, né? Eu acho que ele tem uma ideia na cabeça, ele tem um sentimento no coração, mas a partir do momento que ele coloca a obra dele no mundo, essa obra é do interlocutor, é de quem tá lendo, é de quem tá assistindo. E eu acho bacana esse seu comentário porque demonstra uma maturidade autoral muito grande da sua parte, né? Não sei como você pensa isso…

MB – Eu acho que sim, porque eu acho que o que acontece com esse filme… que aconteceu com o livro é que, sem perceber, eu não tava… Na verdade, quando eu tava escrevendo eu nem imaginei… Eu não sentei e falei assim, "vou fazer um livro feminista". "Vou fazer um livro que vai falar sobre opressão das mulheres". As situações foram acontecendo.

Eu não sou uma pessoa – geralmente existem mais ou menos dois tipos de escritores, aquele que escreve com um plot na cabeça, né, já sabe direitinho o que vai acontecer; e aquele que tem mais ou menos uma ideia, uma hipótese e vai, vai seguindo ali pela intuição – eu sou do segundo tipo. Eu já tentei escrever da primeira forma e nunca consegui.

Então eu não tinha essa ideia na cabeça assim. Eu acho que só depois que a obra tá pronta é que a gente consegue ver mais ou menos quais são os temas importantes que a gente tocou ali. E eu acho que o que eu consegui com esse livro foi tocar num nervo, no Brasil.

Eu consegui falar de uma história que era muito pessoal [pra mim], mas que também era pessoal, era conhecido por muitas outras pessoas e muitas outras famílias. E foi isso um pouco o que o Karim sentiu ao ler o livro; que o Rodrigo sentiu ao ler o livro; e o que várias pessoas sentem ao ler o livro e ao ver o filme. Eles falam "Uau, essa é uma história que a gente conhece, essa é a história das nossas famílias", né? Então, eu acho que é um pouco por aí.

UB – Com certeza. Aproveitando isso, eu acho que uma das diferenças mais essenciais entre o livro e o filme é o encontro da Guida e da Eurídice, que não acontece no filme. E o Karim usa isso como uma forma de ganhar momentum e ir represando a emoção da plateia e dos espectadores pra daí, no final, quando a Eurídice descobre as cartas da Guida, você tem aquela avalanche de sentimentos…

MB – Sim.

UB – …aquele desrepresamento e tudo mais. E mostra aquela dignidade da Eurídice, mas é uma vida esvaziada de conteúdo, enfim. E no livro isso não acontece dessa forma. Qual você acha que é a diferença essencial nesse sentido? Porque no filme as reflexões são similares, mas elas acontecem por um outro caminho, digamos assim. Quem é emocionalmente a Eurídice Gusmão no final do livro? No final da vida dela ali, no final do livro?

MB – No final do livro? É interessante porque assim, realmente, o final do livro e o final do filme são muito diferentes, mas uma coisa que poucas pessoas sabem – é o seguinte, vai ter um spoiler aqui, eu não sei se…

[ALERTA DE SPOILER]

MB – Um dos finais que eu tinha imaginado pro livro era a Eurídice enlouquecendo, né? Que eu achei interessante, porque o Karim seguiu mais ou menos esse caminho quando ele fez o filme dele.

Mas uma coisa que eu acho que é similar, tanto no livro quanto o filme, é que tanto eu quanto o Karim, a gente tinha, eu tinha certeza que eu não podia fazer um final feliz para essa história, né?

Só que eu sou muito mais boazinha do que o Karim. O Karim é muito mau! O Karim faz a gente sofrer muito, entendeu? Esse negócio das irmãs não se encontrarem até o final… por isso que eu jamais poderia fazer um filme como esse. Porque eu gosto mais de usar um pouco mais do humor, da ironia. Então, eu acho que ele faz a gente sofrer muito e faz a gente sofrer muito bem com esse desencontro das irmãs.

No meu caso eu fiz um final. Eu não queria fazer um final infeliz. Mas eu também não podia fazer um final feliz. Então o final do livro é um pouco aberto, né? Eu falo de várias coisas que podem acontecer e eu deixo o final aberto, um pouco, para o leitor poder tomar suas próprias conclusões.

UB – E você acha que outra diferença, comparação com o filme… você acha que no caso seria a falta de um olhar verdadeiramente feminino que provoca esse tipo de mudança? Eu menciono isso porque eu li recentemente um texto da Brit Marling que é escritora, roteirista, produtora e atriz do seriado The OA [2016-2019] que tá na Netflix, e ela fala muito sobre essa questão do protagonismo feminino no cinema hollywoodiano, né?

E a questão de que, na verdade, a protagonista forte feminina nada mais é do que um homem em formato de mulher. Ela age como um homem, ela tem aquela coisa da testosterona, da brutalidade ali… e ela fala que como atriz ela não quer ser a protagonista forte feminina porque a verdadeira protagonista forte feminina ainda não é muito representada. São raros os exemplares de mulheres que agem como mulheres fortes. Porque a mulher forte age pela sensibilidade, às vezes ela age pela sutileza e não essa coisa da mulher que pega [em armas].

MB – Sim.

UB – A "senhora Smith" da Angelina Jolie, que pega em armas, sai atirando e tudo mais. Você diria que talvez a diferença entre o livro e o filme é que, apesar do Karim ter uma sensibilidade maravilhosa e o filme ter ficado lindíssimo, talvez falte a ele a verdadeira sensibilidade feminina?

MB – Não, eu acho que ele teve toda a sensibilidade do mundo. Eu não tenho o menor problema de ter sido um homem que fez esse filme… dele ter sido um diretor homem. Eu acho que ele… o mais importante, no meu ponto de vista, para um artista, é a empatia e a sensibilidade. Óbvio, e a experiência de vida. Mas eu acho que se ele tem a empatia e ele tem a sensibilidade, ele é capaz de contar uma história.

E isso o Karim teve. Então, em momento nenhum eu tive esse problema dele ser um homem contando essa história, sabe? Na verdade, eu acho que eu tive muita sorte de ter uma pessoa com essa sensibilidade incrível para fazer essa história. E eu não vejo assim [como a Brit Marling].

Só para te dar dois exemplos assim… Little Women, que foi um filme que também concorreu a alguns Oscars agora, é um filme que não tem esse perfil masculino das mulheres; e eu acho que tem um livro e um filme também, só pra citar um outro que eu acho que para mim vai ficar na história assim como um "antes e depois" que é o Eat, Pray, Love com a Julia Roberts. Porque é uma mulher que decide – Wild [Livre, 2014, no Brasil] também, com a Reese Whiterspoon – mas assim, são filmes de protagonistas que desejam seguir o caminho delas e seguem. E não tem esse perfil masculino. Então sim, eu concordo com você, existem alguns filmes que tem [um perfil masculinizado], mas eu acho que isso não acontece na Vida Invisível e eu acho que existem outros exemplos no cinema em que isso não acontece.

 

Cena do filme Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019), adaptação do livro Mulherzinhas (Little Women, 1868) de Louisa May Alcott.

 

UB – Com certeza. Só para gente contextualizar, Little Women aqui no Brasil chama Adoráveis Mulheres [2019] – pra quem está ouvindo e tá curioso – já é a quinta [sexta] adaptação [para os cinemas] desse livro que é, se não me engano, de 1800… [Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, 1868]. Eu não vou lembrar a data, depois eu coloco no texto. E o Eat, Pray, Love é o Comer, Rezar e Amar [2010], que tem o Javier Bardem faz no final papel de um brasileiro…

MB – É!

UB – Acho incrível, é divertidíssimo ver ele tentando fazer sotaque de brasileiro. Mas, realmente, é bem lembrado! Esses papéis femininos fortes… a gente tá vendo hoje em dia uma abertura maior, principalmente no cinema internacional, de figuras femininas com protagonismo verdadeiro e mais forte, sem uma caracterização que seja tão… aquela coisa do Teste de Bechdel, hoje em dia, mais filmes tem passado por ele…

MB – Sim.

UB – …sem ser descartados. Aproveitando que a gente está falando dessa questão de machismo e feminismo e tudo mais, como você vê essa questão hoje em dia? Eu não sei se você tem acompanhado… você tá morando em Los Angeles, já tem um tempo né Martha?

MB – Sim, sim.

UB – Mas acho que, muito provavelmente, você tá acompanhando as mudanças que estão acontecendo no país…

MB – No Brasil. É. Eu acho que o filme do Karim veio em boa hora. E eu fico muito feliz que meu livro, foi um livro de 2016, que ainda vende bem, vende bastante. E eu acho que são duas obras importantes para o momento atual porque existe, por parte do governo, e por parte das pessoas que apoiam o governo, essa sensação de nostalgia, né? De que o passado era melhor, né? E que nós devemos voltar a época em que havia uma certa… essas exaltações dos costumes tradicionais.

E na verdade não era assim. Eu acho que tanto livro quanto o filme, eles mostram que o passado era muito ruim para a mulher, né? E também era ruim para outros setores da sociedade – eu falo ali um pouco da história da Filomena, que é uma prostituta com quem a Guida termina morando, ex-prostituta.

Então eu acho que livro e filme são muito importantes pro Brasil atual porque mostram que essa nostalgia é um sentimento completamente falso e que o passado não era tão bom quanto algumas pessoas pensam que era.

 

Eurídice Gusmão (Fernanda Montenegro) em cena de A Vida Invisível.

 

UB – Vou te dar um feedback, como público masculino. O pessoal gosta de segmentar as coisas e fazer uma diferença. E é óbvio, né? Existem diferenças, isso é óbvio. Mas eu acho que a grande questão é que com as diferenças é possível que todo mundo tenha seu espaço e seu papel.

E mesmo para quem é homem, a situação lá atrás, nos anos 50 – e o pessoal que tem essa nostalgia daquela época [não avalia] – é o quanto era complicado você, como homem, não poder falar de sentimentos, não poder expressar uma tristeza…

MB – Lógico!

UB – Eu tenho histórias na família de parentes que perderam os pais – perderam um pai ou a mãe – e que não conseguiram atravessar o luto porque não podiam se permitir chorar a morte de um pai ou de uma mãe.

MB – Sim.

UB – Então isso é muito triste e degradante né?

MB – Sim. Eu acho que o patriarcalismo tira esse direito do homem de poder lidar com sentimentos. De poder lidar, de se aproximar dos filhos, de ter uma relação mais humana, mais calorosa com as pessoas. Então eu acho que é um sistema ruim para todo mundo né?

UB – Com certeza. Agora me fala um pouco dos novos projetos, se você pode falar a respeito deles… o que tá vindo por aí, tô sabendo que você tá com um livro novo para sair, não é isso?

MB – Sim, eu tô com o livro novo. Prefiro não falar sobre o quê é agora. Daqui a pouco, daqui a pouco todo mundo vai saber! Mas posso dizer que é um romance e eu tô quase lá, no final! Assim, tô correndo a maratona e falta 1 km!

UB – Sei como é!

MB – Então eu já posso dizer que vai acontecer.

UB – Legal.

MB – E eu comecei recentemente uma coluna no jornal O Globo. Eu tô escrevendo nas quartas-feiras, a cada duas semanas. Então a minha vida tá indo um pouco por aí agora.

UB – Muito bacana Martha! A gente tá com o tempo hoje um pouco curto aqui, eu não quero tomar muito da sua agenda… mas eu te agradeço muito a disposição e a tua abertura em receber a gente, em poder conversar com a gente. E queria mais uma vez te agradecer pelo belo livro, te agradecer pelas obras e desejar muito sucesso: no livro novo, na coluna nova. E espero que a gente consiga conversar em breve a respeito da nova obra.

MB – Ah, vamos sim, vamos sim!

UB – Legal demais.

MB – Tomara, tá bom?

UB – Então é isso aí pessoal.

MB – Então tá bom.

UB – Se vocês estão ouvindo a gente até agora, eu falei com Martha Batalha. Agradeço mais uma vez a presença dela. E fiquem com a gente que tem mais UB Entrevista em breve pessoal. Valeu!

MB – Obrigado Alexandre, tchau.

 

Sugestão de Leitura:

 

 

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

 

 

A Vida Invisível

Sinopse: Rio de Janeiro, década de 1940. Eurídice (Carol Duarte) é uma jovem talentosa, mas bastante introvertida. Guida (Julia Stockler) é sua irmã mais velha, e o oposto de seu temperamento em relação ao convívio social. Ambas vivem em um rígido regime patriarcal, o que faz com que trilhem caminhos distintos: Guida decide fugir de casa com o namorado, enquanto Eurídice se esforça para se tornar uma musicista, ao mesmo tempo em que precisa lidar com as responsabilidades da vida adulta e um casamento sem amor com Antenor (Gregório Duvivier).

 
 
 
 

 

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