Conheça o clássico que redefiniu o noir nos quadrinhos em Sin City: O Difícil Adeus de Frank Miller
Sin City é um dos pontos mais altos da carreira de Frank Miller, reunindo várias histórias policiais (crime comics) publicadas nos anos 1990. Todas sobre personagens de moral duvidosa em uma cidade corrupta e violenta ao estilo Gotham, com investigações, mistério e femmes fatales. A atmosfera é lúgubre e notívaga, no P&B de alto-contraste que revitalizou o subgênero noir.
Vale contextualizar a obra. Os anos 1980 haviam colocado Miller entre os maiores quadrinistas da época, circulando entre Marvel e DC Comics produzindo clássicos como O Cavaleiro das Trevas (1986), A Queda de Murdock (1986), Elektra: Assassina (1986-1987) e Batman Ano Um (1987).
Na Casa das Lendas, ele publicou a primeira HQ totalmente autoral: Ronin (1983-1984). A liberdade foi uma das formas que a DC usou para tirar Miller da concorrência nos primeiros anos daquela década. E a influência da cultura oriental, que tinha dado pistas na run do Demolidor (1979-1983), passou a ter destaque.
Mas o fim dos anos 1980 marcaram uma insatisfação de Frank Miller – e de outros quadrinistas – com a DC. Foi quando o autor passou a defender com ímpeto os direitos autorais e atacar a censura nos quadrinhos. Como consequência, Miller levou suas ideias para a Dark Horse Comics, onde teria total liberdade para criar Sin City e, finalmente, trabalhar em sua temática preferida de forma “raiz”.
Seis edições da DPC, revista que publicou Sin City pela primeira vez
A primeira história foi publicada originalmente em 13 partes, chamada apenas de Sin City, nas revistas Dark Horse Presents: Fifth Anniversary Special e Dark Horse Presents (DHP) de #51 a #62, entre 1991 e 1992. No mesmo ano, a obra saiu em volume único com o título The Hard Goodbye (O Difícil Adeus).
No Brasil, a editora Globo publicou o quadrinho em 1996 como Sin City: Cidade do Pecado, adaptação do título original – sin é pecado em inglês –. A Devir, atual responsável pela série por aqui, chegou a publicar a obra em capa cartonada em 2005 e em 2012. No mês de março de 2022, a editora lançou a versão de luxo, capa dura, totalizando 224 páginas. Agora, com o título Sin City: O Difícil Adeus.
No Brasil, a HQ saiu primeiro em capa cartonada, respectivamente em 1996, 2005 e 2012
Qual o enredo de Sin City: O Difícil Adeus de Frank Miller
A HQ tem início com a cena de amor entre Marv e Goldie. O personagem acorda e percebe que a companheira – que conheceu naquela noite – está morta. Minutos depois, a equipe da polícia bate à porta e começa a ação frenética, com Marv atacando os agentes em seu caminho e fazendo uma fuga cheia de acrobacias, algo que nos acostumamos a ver na arte de Miller desde a run do Demolidor (1979-1983).
Marv é o típico anti-herói noir que protagoniza a história como narrador personagem em tempo real. Nos recordatórios acompanhamos os monólogos mentais do brutamontes analisando cada situação, expondo como se sente e investigando a morte de Goldie. Ele não é propriamente um detetive, mas foi declaradamente inspirado no investigador casca-grossa Mike Hammer, de Mickey Spillane (1918-2006), famoso na literatura de ficção criminal.
Miller é impecável no P&B estilizado de alto contraste em Sin City
O protagonista saiu recentemente da detenção, perturbado e com marcas de violência que desfiguraram seu rosto. Por algum motivo, Goldie foi a primeira dama que o deu atenção, mesmo que por poucas horas. Aquilo seria o suficiente para ele querer vingar sua morte. Apesar de bruto, Marv tem alto senso de moral e certo cavalheirismo com as mulheres.
Algumas parcerias são importantes. Lucille é a agente da condicional que fornece remédios psiquiátricos – aparentemente sem prescrição – à Marv. No começo da aventura, descobrimos o famoso Bar da Kadie, uma das áreas mais “seguras” de Sin City, onde Nancy trabalha. O ex-detento frequenta o local e as duas mulheres têm gratidão por favores do passado, o que lhe renderá algum apoio.
A investigação de Marv é bruta, cheia de mortes, conseguindo nomes um por um para fechar o quebra-cabeças. A trama envolve “peixes grandes”. Entre eles, nesse fio da meada, conheceremos um assassino em série chamado Kevin, muito bem construído. A relação de ambos será desafiadora e violenta.
Cena clássica na abertura de Sin City: o encontro de Marv e Goldie. O autor carrega na sensualidade
Marv tem, ainda, uma importância gigante na série: é o primeiro responsável por nos apresentar Basin City – nome oficial da cidade – e suas rotinas. Na edição, descobrimos que ela cresceu e se urbanizou a partir da prostituição financiada pela família Roark, na época do Velho Oeste. Os herdeiros são “donos” da região até hoje.
A arte e as influências de Frank Miller em Sin City: O Difícil Adeus
A arte é um pilar fundamental em Sin City. As primeiras características são o P&B de alto contraste e as linhas retas. Miller teve autoridade sobre tudo. Escrevia, desenhava, letreirava e determinava o tamanho de cada trama.
O domínio de perspectiva de Miller: cômodos e becos claustrofóbicos normalmente antecedem a ação
Tanto os quadrinhos que ele lia na juventude – crime comics e de guerra – quanto os primeiros filmes que marcaram o noir são P&B, com caprichado trabalho de luz e sombra. Quando Miller chegou a Nova York em 1976, seu portfólio indicava a preferência por contos policiais. Nos anos 1980, o que pôde fazer foi levar essas influências a personagens como Batman e Demolidor.
Esses dados ajudam a entender o que significou Sin City para Frank Miller, onde teve carta-branca da Dark Horse Comics. Desde O Difícil Adeus, a série é uma mistura de antigas características das obras noir com o estilo mais autoral e estilizado de Frank Miller, que rejuvenesceu o gênero.
Em grande parte dos quadros, o artista foca nos traços dos personagens, as vezes apenas silhuetas, e não detalha os cenários para além de luzes e sombras que entram por frestas e janelas. É o que aumenta a sensação de mistério.
O texto em off e a chuva marcam o ritmo nos momentos mais introspectivos e poéticos da HQ
Em outros momentos ele carrega a arte de esmiúces. A passagem de um estilo para o outro é visível logo no primeiro capítulo. Das cenas de amor entre Marv e Goldie, de alto contraste em meia-luz, até a hora em que ele acorda para a dura vida real. O quarto detalhado passa a ideia de sobriedade, de que ele saiu do sonho de amor, e ainda por cima nos carrega de claustrofobia.
Táticas semelhantes são feitas ao longo de toda a obra. Miller sabe usar recursos da arte para delinear o ritmo, a tensão e as emoções do leitor – e dos personagens – ao seu modo, como um diretor de cinema.
Nesse sentido, outro ponto destacável na arte são as sequências de ação que imprimem agilidade e movimento. Os filmes de artes marciais e as técnicas do genial Bernard Krigstein (1919-1990) – que também investia na complexidade psicológica – já foram citados como referências pelo quadrinista. O ritmo, quando necessário, é reduzido com longos textos em off, técnica herdada de Will Eisner (1917-2005).
Sin City (1991), Elektra Vive (1990) e O Cavaleiro das Trevas (1986). O gosto de Miller por quadros de perfil é recorrente e acentuado no P&B de Sin City
Esses textos marcam em Miller as características literárias do Romantismo e do Terror Psicológico – típico de noir –, como o foco em reflexões internas e subjetivas com paixão, saudade, sentimentalismo, sofrimento amoroso, suspense e paranoia. Ali, Miller simula a linguagem informal e das ruas e foca nos pensamentos do personagem.
Na literatura, Dashiell Hammet (1894-1961), Mickey Spillane, supracitado, e James Ellroy são nomes que inspiraram Miller. Na arte, o alto contraste era característico de Johnny Craig (1926-2001), Milton Caniff (1907-1988), Hugo Pratt (1927-1995) e, principalmente, José Muñoz. Harvey Kurtzman (1924-1993) é outro citado por Miller e podemos comparar facilmente o detalhismo das construções de alvenaria de ambos. Nenhum dos artistas é vinculado aos super-heróis. Normalmente a quadrinhos de guerra, policiais ou terror.
O criador do The Spirit influencia, ademais, na concepção de protagonismo da cidade, que passa de Nova York para Basin City, no caso de Miller. Ela determina a história e a vida de todos os personagens. É interessante perceber que em uma região desértica, a tempestade cai raramente e em momentos dramáticos, quando os longos traços de chuva respondem severamente a silhueta do Marv.
Miller se autorreferencia. Marv e Murdock se afundarão num espiral de loucura por suas amadas
Isso nos mostra o que Frank Miller chama de “expressionismo” nos quadrinhos, segundo ele, “a manipulação ou distorção do desenho onde a realidade externa representa a realidade interna dos personagens.” Além de Eisner, Orson Welles e Fritz Lang são cineastas que o autor pontua como referências na técnica.
É verdade que Miller repete algumas cenas e sequências que aparentemente ele gosta de desenhar, como vidros de janelas e carros quebrando com a passagem de um personagem, as prisões em forma de jaulas que ele usa desde a fuga do Mercenário na icônica Daredevil (1964) #181 – onde é possível ver a gigantesca evolução do artista –, os traços de sensualidade feminina…
A autorreferência, quase que como uma homenagem aos super-heróis que redefiniu, aparece diversas vezes em Sin City. Algo visto na desenvoltura entre os prédios e robustez física de Marv que lembra o Batman de O Cavaleiro das Trevas (1986), com o casaco parecendo uma capa preta. Sem falar na semelhança entre Goldie e Elektra.
Imagens de Elektra Vive (1990), O Difícil Adeus (1991) e do longa de 2005
Vale a pena ler?
Os quadrinhos policiais estavam em baixa desde os anos 1950, muito por causa da censura do Código dos Quadrinhos (Comics Code Authority) e do Macarthismo. Com Sin City, Miller retomou o interesse dos leitores – consequentemente dos artistas e editoras – para o gênero.
Ao redefinir a forma de fazer noir com tamanha maestria, acabou influenciando outras mídias. Não à toa, a franquia resultou em dois filmes. Sin City: A Cidade do Pecado (2005) e Sin City: A Dama Fatal (2014), fieis a HQ inclusive esteticamente e dirigidos por Robert Rodriguez e Frank Miller. O primeiro se baseou em O Difícil Adeus para um dos três contos filmados.
Sin City dá o pontapé inicial em alto nível, unindo roteiro e arte para que trabalhem em prol um do outro. O manejar dos momentos de ação e suspense são impecáveis, com direito a um psicopata digno dos maiores thrillers. É daquelas obras que só tem o efeito desejado em P&B e a narrativa vai num crescente até a conclusão, chocante. Difícil largar o livro.
Essas são algumas das características que deram a Miller três prêmios Eisner em 1993, nas categorias Melhor Roteirista/Artista, Melhor História Serializada, e Melhor Desenhista/Arte-finalista (publicações em preto e branco). Vale conhecer…
Gostou do texto? Leia outras matérias do David Horeglad (HQ Ano 1) para o UB!
DEMOLIDOR DE FRANK MILLER (1979-1983) – BAÚ DE HQs
O FANTASMA POR JIM APARO (1969-1970) – BAÚ DE HQs
HARLEEN DE STJEPAN SEJIC (2022) – O ULTIMATO
Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
Compre pelo nosso link da Amazon e ajude o UB!