Conheça o quadrinho mais reconhecido do artista por trás de Spy vs. Spy em: O Sistema de Peter Kuper
O psicólogo norte-americano Stanley Milgram (1933-1984) foi o responsável pela teoria dos seis graus de separação, afirmando que uma pessoa está ligada a qualquer outra no mundo por meio de no máximo seis conexões de amizade. Proximidades geográficas ou o pertencimento a um mesmo grupo social pode aproximar ainda mais esse distanciamento.
Peter Kuper (Pau e Pedra), expert em HQs mudas e temas políticos, parece brincar com essa ideia em O Sistema, publicado neste ano em edição definitiva pela Editora Monstra. O quadrinho saiu originalmente no selo Vertigo Verité, da DC Comics, em 1996, dividido em três volumes, e no Brasil em edição única pela Abril, com 100 páginas e lombada de grampo, em 1998.
A ideia da obra surgiu durante uma ida de Kuper ao New York Times, à trabalho, observando as pessoas no último vagão do trem. “Essa viagem era tudo o que tínhamos em comum, ou nossas vidas poderiam se cruzar e impactar umas às outras de maneiras positivas ou até catastróficas?”, questiona ele.
Qual a trama de O Sistema de Peter Kuper
Na verdade, são várias tramas que se conectam, formando uma espécie de crônica em quadrinhos de uma certa teia social, mais especificamente de Nova York. A estrutura da narrativa parece caótica, como a cidade, com mudanças relativamente rápidas de uma subtrama para outra.
Começamos com o assassinato de uma stripper e recortes da vida cotidiana de cidadãos comuns. Um detetive, William MacGuffin, traumatizado por ter matado acidentalmente uma criança no passado; um morador de rua e seu dálmata; um jovem negro, Yusuf Stewart, que terá fim trágico por causa da cor da pele; um garoto grafiteiro com seu caderno de desenhos e o amigo traficante; o policial corrupto…
A arte de Kuper tem ritmo intenso como a cidade de Nova York
As ligações são ininterruptas e diversas. Desde o cruzar de dois personagens na rua, o assistir ou ler da mesma notícia nos jornais ou na TV, a mera passagem de subtramas com composição e sobreposição surrealistas, até influências diretas, como vínculos profissionais, amorosos ou de amizades, os encontros do comércio – legal e ilegal – e as tragédias.
E nessa vemos o quanto o dinheiro, que se repete nos quadros, é um elemento importante. O autor usa as notas em papel, ainda muito comuns nos anos 1990, para destacar como o capital está inserido nas relações. Não há quase nada que se faça sem isso. As reflexões são inúmeras.
O transporte também é protagonista. O metrô, sempre grafitado, e o Grand Central Terminal são pontos de encontro de várias dessas pessoas. É o vaivém urbano. O maquinista alcoólatra, inclusive, fator chave dessa equação, é um dos personagens do enredo, assim como o taxista de origem árabe.
Quase que como pano de fundo, vamos acompanhando duas tramas macro. Uma é a disputa eleitoral entre o presidente republicano Rex e o candidato progressista Muir. Outra é a das grandes corporações Maxxon, Syco e Micron. Sempre pelos noticiosos ou pelos letreiros de Nova York.
Essas empresas também têm representação de carne e osso, na forma do trader que vende informações privilegiadas a tubarões de Wall Street – o famoso insider trading –. É poético que a primeira aparição de uma skatista-hacker que mexe com sistemas bancários seja jogando o fliperama do “Moral Kombat”.
O dinheiro e a violência estão presentes em meio as engrenagens do sistema
As histórias pessoais têm finais tristes e felizes, porém, invariavelmente com dramas ou dificuldades no meio do caminho. É como a stripper colega daquela assassinada, que precisa pagar as despesas do filho e pode ser a próxima vítima do serial-killer, como o terrorista de tapa-olho que tentará explodir o prédio da Syco, ou o homem que espera a recuperação do amante num hospital. Tudo sem balões de diálogo e com arremate ótimo.
Vale a pena ler?
À primeira vista, a maioria dos personagens, se deixarmos fugir o olhar moralizante, não se apresentam como totalmente bons ou maus. Sim, há o psicopata, os perversos. No entanto, são justamente os outsiders que geram comoção no leitor, tanto pelo olhar humano de Kuper quanto pelas tentativas, mesmo que limitadas ou inconscientes, de enfrentarem o tal sistema.
Para quem assistiu ao documentário The Corporation (2003), que narra métodos com que as grandes corporações norte-americanas dominam a sociedade, inclusive com vínculos governamentais, parece haver uma ligação interessante entre as duas obras, justamente pelo contraste.
No longa, vemos a estrutura do que Kuper desenhou como “Maxxon”, “Syco” e “Micron”. Mas em O Sistema, como dito antes, elas estão como pano de fundo. O quadrinista se volta mesmo é ao dia a dia dos populares. E ficam as questões do próprio autor: o quanto eles podem afetar uns aos outros? Vamos mais longe: o quanto eles podem afetar o sistema?
Os grids de Kuper são diversificados e com sobreposições surrealistas
O retrato é tragicômico. Acerta em não entregar mastigado e em deixar muitas das interpretações para o leitor. É inevitável reparar na repetição de temas de uma metrópole como a violência, o consumo, os monopólios e as desigualdades sociais, a corrupção e a criminalidade e, porque não, os afetos no meio disso tudo.
A arte de Peter Kuper, sabidamente autoral e divertida, impacta. Ele faz os desenhos iniciais à lápis e, em seguida, cria máscaras para utilizar a técnica do estêncil. Assim, com uma lata de spray, pinta os quadros e forma as bases da arte. Em cima disso, o artista complementa com cores de aquarela, lápis de cor, colagens, etc.
Em O Sistema, Kuper consolidou seu estilo único, que dialoga com o grafite, e o levou para o mainstream dos quadrinhos. A edição absoluta da Monstra, além de trazer um título que há mais de duas décadas pedia por republicação, o faz no melhor tamanho possível (32 x 23,5 cm) para apreciar a arte de Kuper. Os extras contribuem para entender o processo de criação.
Desde a publicação inédita de O Sistema, tivemos muitos avanços tecnológicos, conforme o autor destaca no prefácio. Os telefones e as televisões viraram telas finas, as transações financeiras e a leitura de notícias são feitas pelo smartphone, entre tantas mudanças específicas de Nova York. A lógica do sistema parece a mesma. A vida ali soa efêmera, mas as engrenagens são facilmente substituídas.
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Avaliação: Excelente!
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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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