Mukanda Tiodora de Marcelo D’Salete – O Ultimato

Em 2 de Fev de 2023 • 6 minutos de leitura
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Conheça detalhes de Mukanda Tiodora de Marcelo D’Salete, última obra do premiado autor brasileiro

Marcelo D’Salete está facilmente entre os maiores artistas literários do mundo. Assim como Chico Buarque (Leite Derramado) e outros grandes, tem uma característica de grande valia: trazer ambientes e personagens históricos reais, com intenso trabalho de pesquisa para criar as estruturas de suas obras.

Para nossa sorte, D’Salete foge do tradicional e faz isso através dos quadrinhos. E o reconhecimento, inclusive internacional, está registrado por meio dos prêmios Jabuti e HQ Mix por Angola Janga (2017), do prêmio Eisner por Cumbe (2014) e pela mídia especializada.

Todo esse preâmbulo ajuda a nos situar onde estamos quando pegamos para ler Mukanda Tiodora, última HQ de Marcelo D’Salete. Foi publicada pela editora Veneta em novembro de 2022, capa dura, cinco capítulos, com 224 páginas que incluem um poderoso material historiográfico sobre a personagem título e a cultura da população negra na capital paulista da década de 1860, que era dividida entre livres e escravizados convivendo nas mesmas ruas e lugares.

A arte de D’Salete continua com o alto contraste P&B, mas com novas texturas. Segundo o autor em entrevista ao Vitralizando, foi feita em aguadas de nanquim com efeitos de luz em tinta branca de corretivo, citando influências de Alberto Breccia (O Eternauta 1969).

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D’Salete faz experimentações na arte da HQ, ainda visceral e de alto contraste

Mukanda Tiodora – Quem foi Teodora Dias da Cunha?

O material extra ao fim do quadrinho, incluindo um texto da professora de História da África Cristina Wissenbach, nos aponta a importância de Teodora Dias da Cunha para aprendermos um pouco mais daquele período e dos desejos, cultura e espiritualidade dos escravizados que viviam em São Paulo, bem como diferentes estratégias que tinham para conquistar a liberdade. Necessário pontuar que, na época, os movimentos abolicionistas ganhavam cada vez mais força e ali circulavam mentes como Luiz Gama e Ferreira de Menezes.

Teodora, acredita-se que da região do antigo Reino do Congo, elaborou pelo menos sete cartas, a maioria destinada ao esposo, Luís, e ao filho, Inocêncio, em 1866, quando tinha entre 50 e 60 anos. Na ocasião, morava na Rua da Liberdade com seu senhor, o cônego José da Terra Pinheiro. A africana andava pelo centro da capital para realizar atividades como buscar água – tanto para o cônego quanto para vender – e comprar mercadoria nos armazéns.

Luís, o marido, não foi revendido como Teodora, e ficou no interior paulista dos cafezais, onde o trabalho escravo foi determinante para o crescimento de regiões como Campinas. Próximo à Rua da Liberdade, no Pátio de São Gonçalo, onde agora temos a famosa Praça João Mendes, vivia Claro Antônio dos Santos, pedreiro escravizado. Teodora descobriu que ele sabia escrever e pagava-lhe seis vinténs para que redigisse as cartas.

Claro foi acusado e condenado por roubar a casa de cônego Terra e as missivas de Teodora foram juntadas nos autos do processo criminal. A africana era suspeita de ser cúmplice. Hoje, historiadores como a Dra. Wissenbach têm acesso aos textos de Teodora, bem como aos arquivos jurídicos e do inquérito policial em que ela chegou a ser interrogada.

A maioria das mensagens não alcançou os destinatários. Os conteúdos descreviam o esforço e planejamento para amealhar o pecúlio e negociar a alforria do casal, na busca de juntar a família e cumprir uma promessa que fizeram ainda na África. Conforme sugere D’Salete no posfácio, a narrativa pode refletir, entre outras coisas, o imaginário e a visão de mundo de milhões de africanos que cruzaram o Atlântico.

Além das estratégias práticas, Teodora expressava sua espiritualidade. Em determinado momento, ela fala: “Eu tive um aviso de noite, vinha e me falava que cumprisse a promessa que prometi de voltar para minha terra. […] Deus não quer se aparte conga de perto de angola.”

A partir de um obituário do jornal Correio Paulistano de 10 de setembro de 1868, suspeita-se que Theodora faleceu antes de retornar livre à África.

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Benê conhece pela primeira vez o trabalho escravo em uma fazenda de café

Qual a trama de Mukanda Tiodora de Marcelo D’Salete

Conforme percebemos nas cartas, Tiodora – forma de escrita do nome utilizada por D’Salete – misturava real e imaginário, sonhos e projeções objetivas. As primeiras páginas da HQ mostram ela conectada com a entidade de suas visões.

Em seguida, na São Paulo de 1866, a mulher é acordada para vender frutas na cidade. É na andança que encontra com Claro para ditar uma nova carta. Esse momento é representado com muita sutileza por D’Salete, só em desenhos, praticamente como HQ muda. As faces cansadas dos escravizados, os detalhes do ambiente, do papel, da tinta, da fala ao pé do ouvido…

Pouco depois, o autor introduz dois personagens, os jovens Joana e Benedito. A garota recebe o envelope de Claro para levar ao tropeiro, mas não o encontra. É Benê que se oferece, quase a força, para levar a carta e ajudar Tiodora. 

O enredo do quadrinho foca na aventura do garoto que assumirá a responsabilidade de chegar ao marido da africana na fazenda de café. Para isso, Benê precisará fazer amizade com o tropeiro e conseguir ajuda com moradores de um mucambo, além de enfrentar a violência da sociedade escravista e assistir algumas reviravoltas.

Vale citar as participações especiais, digamos assim, dos advogados e jornalistas Luiz Gama e Ferreira de Menezes, dois dos principais nomes da luta abolicionista. Gama trabalhou diretamente na libertação de mais de 500 escravizados.

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Tiodora encontra Claro para escrever a carta que correrá por São Paulo durante a história

Vale a pena ler?

Mukanda Tiodora é a apresentação dessa mulher, de sonhos e objetivos nítidos, por meio da arte, nos dando um panorama poético da complexidade das experiências, lutas e anseios daqueles habitantes de São Paulo. Com a limitação dos levantamentos historiográficos, muito fica em aberto, como os detalhes de por onde Teodora passou, como era a vida dela na África. As lacunas são campos frutíferos para a ficção.

No quadrinho, D’Salete pôde apresentar todo o peso emocional do que sabemos da vida dessa africana escravizada, mas indo além e ressignificando. Sim, ouve apagamento histórico, porém, muitos resistiram e conseguiram manter suas lembranças culturais e familiares.

O autor se mune disso para trazer um conto de esperança, enfrentamento e resistência em meio a um cenário violento. Ainda, delineia as diferentes formas de escravidão – do interior, da cidade, de dentro de casa, de ganho –.

Curioso pensar que a capital paulista não escancara, como outros municípios históricos do país, registros desses horrores. A não ser por suas consequências, como a desigualdade social e de oportunidades refletida na cor da pele.

Também por isso, Mukanda Tiodora evidencia o que muitos paulistanos não atinam: a exploração dos escravizados estava nas ruas que costumamos caminhar diariamente, na hoje japonesa Liberdade, no permanente reduto de advogados da região da Sé e da São Francisco, entre as secretarias de governo do Anhangabaú e da República… A arte da ficção histórica e sua difusão, no caso, se fazem necessárias.

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Avaliação: Excelente!

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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse 
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