Conheça Maus, a primeira graphic novel a ganhar o prêmio Pulitzer
Estima-se que seis milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Um milhão executados em Auschwitz. Destes, 870 mil desceram dos vagões direto para as câmaras de gás. Homens, mulheres e crianças. Os mais saudáveis foram submetidos à tortura e ao trabalho escravo antes da execução.
Como contar a história do Shoah com o devido respeito e nos aproximando – por mais que um exercício impossível – de tal genocídio? Os números são importantes. Dimensionam a extensão do horror imposto pelo nazismo. Mas não contam o sofrimento de quem o viveu. Art Spiegelman ouviu a experiência da fonte mais próxima que ele tinha: seu pai, Vladek Spiegelman, um sobrevivente polonês. E colocou tudo no papel da melhor forma que sabia, uma história em quadrinhos.
Em Maus: a história de um sobrevivente (1980-1992), Spiegelman nos mostra como foi ouvir os relatos do pai, o que o idoso vivenciou e como o trauma familiar atravessou gerações refletindo, inclusive, nele. Pela primeira vez, achei difícil ler uma HQ. Por vezes tive que parar, respirar. Spiegelman conseguiu criar uma forma pessoal, tocante, respeitosa e perturbadora de apresentar sua visão do Holocausto – e a história de Vladek –. É uma daquelas obras que só funcionam nos quadrinhos.
Qualquer tentativa de condensar este conteúdo em outra mídia seria uma catástrofe. Spiegelman retratou cada nacionalidade como um animal específico: os judeus eram os ratos; os alemães, gatos; e os poloneses, porcos. Uma solução que evidencia o trato de praga – e não de humanos – que recebiam os judeus. Sem diferenças faciais, é confuso entender quem é quem apenas pela arte no início da leitura.
O nazismo aparece aos poucos na história, a partir de a primeira vez que a família vê a suástica
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A obra completa é dividida em dois volumes: Maus vol. 1: meu pai sangra história (1986) e Maus vol. 2: e aqui meus problemas começaram (1992). Originalmente, foi publicada entre 1980 e 1991 na Raw, uma revista alternativa de quadrinhos criada e editada por Spiegelman e sua mulher, Françoise Mouly. Maus foi a primeira graphic novel a ganhar o prêmio Pulitzer. Em uma categoria especial, já que era difícil defini-la entre ficção e biografia. No Brasil, a publicação reunida saiu pela Companhia das Letras em 2009. Vale reforçar que nada ali foi apenas imaginado.
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Qual o enredo de Maus: a história de um sobrevivente
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Art não se dava muito bem com o pai. No início do quadrinho, acompanhamos o autor visitar Vladek em Rego Park – no centro do Queens, em Nova York – para começar a ouvir suas histórias e escrever o livro. E o idoso, que além de sobrevivente do Holocausto já havia sofrido dois ataques cardíacos, conta sua vida desde a juventude, em Czestochowa, uma pequena cidade onde comercializava tecidos. Lá também acontece o primeiro romance, com Lucia Greenberg, apesar de ele não considerar a ideia de levar aquilo muito longe e, na conversa com o filho, pedir para não ser publicado.
No ano de 1935, em uma visita a sua cidade natal, Sosnowiec, a prima de Vladek o apresenta a uma colega de classe, Anja Zylberberg, futura mãe de Art. E assim vamos entrando no romance dos dois sobreviventes. Conhecendo um pouco da cultura da região, daquele período, a volta definitiva do polonês a Sosnowiec e seu casamento, em fevereiro de 1937.
Toda a construção do autor, mostrando seu envolvimento com o pai nos Estados Unidos e o período anterior ao nazismo na Polônia, vai nos fazendo entrar na história como se fossemos alguém da família, o que é dramático. É um relato muito íntimo. O terror vai sendo impresso aos poucos, como quando Vladek e a família Zylberberg veem a bandeira nazi pela primeira vez na Tchecoslováquia, durante uma viagem de trem.
A HQ intercala momentos entre pai e filho e momentos perturbadores do Holocausto
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O nazismo chega ao país pelos relatos que eles recebiam de parentes e amigos da Alemanha que já estavam sofrendo. Lá, aconteciam os casos de sinagogas queimadas, judeus espancados e comércios destruídos. Tudo um pouco distante da família polonesa. Essa distância muda quando Vladek é convocado para o exército polonês para enfrentar os alemães na fronteira. Os Spiegelman nunca mais teriam tranquilidade.
Vladek viveu dificuldades como a fome e a quase morte de exaustão por trabalho escravo. O autor detalha ainda os inteligentes artifícios do polonês na busca de aliviar sua situação e de sobrevivência, como oferecer mão de obra especializada – mesmo não sendo tão especializada assim –. Um dos destinos desse terror é Auschwitz.
O lado de Art entrevistando e gravando o pai é sempre presente, assim como os momentos familiares que os intercalam. Percebemos que Vladek dava uma educação bastante rigorosa ao filho, que tinha um lado mais artístico e menos disciplinado, o que gerava conflito. Mala se suicidou quando Art tinha 20 anos, depois que ele saiu de um hospital psiquiátrico, o que também gerou um peso implícito na relação dos dois.
Nas tiras, vemos as reflexões de Art e sua preocupação por descrever o pai como um espelho do injusto e preconceituoso estereótipo de avareza que muitas vezes é destinado ao povo judeu. Mas aquelas características estavam presentes no pai, e o autor quis, conforme relata, ser o mais fiel a realidade possível. Apesar de uma obra que usa recursos fantásticos, pode ser considerada, sim, biográfica.
Vladek não passou pelas cruéis câmaras de gás, mas teve contato direto com elas em Auschwitz
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Spiegelman e a metalinguagem
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O principal recurso que Spiegelman utiliza para organizar sua narrativa é a metalinguagem: o quadrinho é usado para mostrar como o autor produziu o quadrinho. A consequência disso é o caráter pessoal que a história ganha, incluindo quando somos testemunhas dos conflitos entre pai e filho durante o processo de criação, onde percebemos a típica dualidade amor e ódio.
No início da criação de Maus vol. 2: e aqui meus problemas começaram, em 1987, Spiegelman teve um bloqueio criativo. Ele coloca isso no papel em um exercício que me lembrou muito Fellini em 8½ (1963) e Woody Allen em Desconstruindo Harry (1997). O quadrinista, porém, me pareceu ir mais longe do que os dois cineastas no uso da metalinguagem que deu um caráter autobiográfico a todas as obras.
Primeiro, pois não usa um alter ego que o distancia da narrativa. Segundo, porque em um quadro que dificilmente seria reproduzido em outra mídia, Spiegelman consegue sintetizar seu momento como autor, a experiência do pai e o quanto todo esse resgate o inseria em culpa e terror. Ele vivia os relatos do Holocausto e, ao mesmo tempo, estava impedido de escrever sobre aquilo. Em parte, pela responsabilidade de traduzir algo intraduzível.
A utilização da metalinguagem por Art dá uma expressão que só poderia ser criada na HQ
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Por que ler Maus
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Essa não é uma HQ apenas para interessados em quadrinhos, mas para qualquer tipo de leitor. Tudo que foi citado acima fala por si só. É uma leitura difícil, mas acredito que necessária, pois relata de uma maneira muito pessoal um momento de horror da História Contemporânea. Conhecer um pouco disso nos ajuda a ser mais humanos e, parafraseando o pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797), “o povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”
A forma com que Spiegelman narra é única, particular, mas nos leva ao sofrimento de milhões. Tanto os traços undergrounds quanto os recursos narrativos contribuem para uma forte imersão no drama relatado. É uma obra que perturba por dias – ou anos – na cabeça do leitor. Spiegelman traz o episódio mais obscuro da humanidade dando uma aula de jornalismo, literatura e quadrinhos. Portanto, se tiver a oportunidade, leia.
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Avaliação: Impecável!
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Créditos:
Texto: David Horeglad (HQ Ano 1)
Imagens: Reprodução
Edição: João Maia
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