Conheça detalhes e curiosidades da fase mais marcante do Homem Sem Medo em: Demolidor de Frank Miller
Frank Miller é autor de alguns dos quadrinhos mais aclamados da história, incluindo Ronin (1983-1984), O Cavaleiro das Trevas (1986), A Queda de Murdock (1986), Batman Ano Um (1987), Sin City (1991-1992) e Os 300 de Esparta (1998).
Em 1979, porém, Miller, aos 22 anos e há cerca de quatro em Nova York, não era muito conhecido entre os leitores, ainda que já tivesse realizado trabalhos curtos e esparsos na própria Marvel e na DC.
A bem da verdade, o quadrinista começou a desenhar o Demolidor, pontualmente, em uma aventura do Homem-Aranha, nas revistas Peter Parker, The Spectacular Spider-Man (1976) #27 e #28, com roteiro de Bill Mantlo. Parker está cego e o Demônio da Cozinha do Inferno precisa ajudar o super-herói do Queens a lidar com isso.
Na época, o editor-chefe da Marvel era Jim Shooter e a Daredevil (1964) ia de mal a pior. Com baixa vendagem, se tornou bimestral na edição #147 e estava caminhando para o iminente cancelamento quando o desenhista Gene Colan decidiu abandonar o barco.
Miller reconhece que não lia quadrinhos de super-heróis, mas viu que o Demolidor era um personagem que podia se enquadrar no estilo de trabalho que ele gostava, com enredos de gângsteres e uma pegada noir. “Sempre fiquei intrigado com a ideia do herói cujo atributo é uma deficiência; um protagonista cego numa mídia puramente visual. E o mais importante: Demolidor era minha chance de desenhar os gibis policiais sombrios que eu sempre quis”, salienta.
Por que não dar uma chance a um jovem talento em uma revista que caminhava para a extinção? Foi o que Shooter fez, com indicação da editora Mary Jo Duffy, e o resto é história – e das boas –.
Miller estreia em Daredevil (1968) na edição #158, de maio de 1979, com os seguintes créditos: “De tempos em tempos, um novo e grande artista cai como uma bomba sobre a Marvel! O rogado Roger McKenzie, os claudicantes Klaus Janson e George Roussos, os almirantes Al Migrom e Jim Shooter têm plena confiança de que o iniciante magricela Frank Miller é mais um destes artistas!”
Traduzindo, são respectivamente roteirista, arte-finalista, colorista, editores e desenhista. O “magricela” só assumiria os roteiros na edição #168, embora tivesse alguma participação criativa na fase do McKenzie, e encerraria a run em agosto de 1981, na Daredevil (1964) #191. A coisa deu tão certo que a publicação, nas mãos dele, voltou a ser mensal, e o personagem que era de segunda linha passou a ter uma das revistas mais concorridas da Marvel.
O Demolidor de Miller é um herói urbano e enfrenta o submundo nas vielas de Nova York
A trama da run do Demolidor de Frank Miller e as mudanças editoriais
A fase inicial da run de Frank Miller teve muitos momentos “padrão Marvel”. Aventuras divertidas e clichês onde o Demolidor enfrentava os tradicionais supervilões da editora e outros com poderes igualmente rocambolescos.
Em Daredevil (1964) #158, o herói combate o Arauto da Morte. A seguir, entre as edições #159 e #162, Eric Slaugther, chefão do crime, quer a cabeça do Demônio. Temos um arco envolvendo a Viúva Negra – ex-amante de Matt Murdock – e o Mercenário, introduzindo as gangues de rua que seriam muito utilizadas por Miller com uma pegada mais urbana e notívaga. Surge ainda Tucão, criminoso bem atrapalhado que marcaria como alívio cômico da revista.
Na Daredevil (1964) #163, Murdock precisa ajudar Hulk a sair de Nova York, de preferência como Dr. Banner. Nela acontece uma importante mudança: o lendário Denny O’ Neil entra na equipe editorial.
A mensal mais emblemática desse início de run é a #164, onde é recontada a história de origem do Demolidor, desta vez pelo traço de Miller, enquanto o personagem está no hospital após o confronto com Hulk e Ben Urich descobrir sua identidade na edição anterior.
Ao fim, SPOILER o jornalista opta por não publicar a matéria em que conta quem é o Demônio da Cozinha do Inferno, para mantê-lo trabalhando em prol da cidade SPOILER.
O detetive das histórias noir é substituído por outro tipo de investigador: o jornalista Ben Urich
Em seguida, temos embates com Dr. Octopus, Gladiador e Bélico para, finalmente na Daredevil (1964) #168, Miller assumir os roteiros, mantendo-se como desenhista com a finalização de Janson.
Era uma vontade do então jovem quadrinista e a recente chegada de O’Neal, que promoveu a mudança, foi providencial. Até então, segundo Janson, a dupla fazia “o que a Marvel queria: histórias inócuas e medianas que não assustassem os antigos leitores. O trabalho era bom, mas não era inspirado.”
É na edição #168 que, por meio de flashbacks, que conhecemos a grega Elektra Natchios e o intenso romance que ela teve com o protagonista nos tempos de faculdade. No período “atual” da HQ, porém, o casal está distante e ela é uma assassina perigosa que voltou da Europa com o objetivo de matar o ladrão Alarich Wallenquist em troca de uma recompensa.
A personagem e o relacionamento com Murdock eram complexos. Como um super-herói conviveria com uma assassina mercenária? Convenhamos, Elektra era forte e fugia dos clichês de boa parte das personagens femininas dos quadrinhos.
Embora a seguir tenhamos algumas subtramas abrindo e fechando, cheias de idas e vindas, podemos dizer que existe um grande arco da edição #168 à #182, que na verdade vai num continuum até a #191, quando se encerra a run de Miller.
A fase envolve um núcleo de personagens com Demolidor, Mercenário, Rei do Crime, Elektra e o Tentáculo, enorme grupo de ninjas assassinos. Foi nesse período, mais precisamente após a terceira edição roteirizada por Miller, que Daredevil (1964) voltou a ser mensal, devido às altas vendas e o sucesso das mudanças.
Na edição #169, o Mercenário escapa da cadeia mais insano que nunca – vendo o Demolidor em todos os cidadãos da cidade –, enquanto o Rei do Crime, Wilson Fisk, em uma fase “do bem”, volta a Nova York para contribuir com a Justiça.
Mas um acontecimento deixa o vilão furioso, o que o faz voltar à ativa muito mais implacável. Vale mencionar que o Fisk de Miller era, de fato, um chefão, calculista, que deixou de ser o vilão essencialmente de porradaria das HQs do Homem-Aranha para ser a maior mente do crime organizado da cidade.
Nessa sequência, teremos novos elementos no cânone do Demolidor que se tornariam centrais: o misterioso treinador cego de Matt Murdock chamado Stick, responsável por ensinar tudo que o advogado sabe nas artes marciais, o Tentáculo e seu mais forte e imortal servo, Kirigi.
Capas das DD (1964) #158, #168 e #181, respectivamente as estreias de Miller como desenhista, roteirista e a double-size em que Elektra é assassinada
A vida pessoal de Murdock é bem trabalhada na fase. Ele está com Heather Glenn, socialite que assume as Indústrias Glenn após a morte do pai, lá em Daredevil (1964) #150. Obviamente ele tem dificuldades de achar tempo para ela e, quando acha, é para orientá-la de maneira questionável em como lidar com a empresa falindo.
Após uma participação especial de Punho de Ferro e Luke Cage como seguranças do Dr. Murdock, que poderia sofrer algum ataque por defender juridicamente o Clarim Diário contra o político corrupto Randolph Cherryh, é em Daredevil (1964) #181 que acontece o momento mais marcante da série: a morte – o que não é bem spoiler, como no caso da Fênix Negra – de Elektra pelas mãos do Mercenário, fulo da vida por ela ter tomado seu lugar como a assassina do Rei do Crime.
Isso aparece na edição double-size que tem início com uma fuga de prisão digna de filme – que o diga Quentin Tarantino em Assassinos Por Natureza (1994) –. O protagonista é Mercenário, durante uma entrevista ao vivo. Aí então temos a derradeira sequência de luta – com seis páginas de tirar o fôlego – entre os dois assassinos.
Nas revistas de número #183 e #184 vemos um dos plots mais legais. O herói vermelho enfrenta traficantes que vendem drogas para crianças, nas ruas e na Justiça, mas Frank Castle, o Justiceiro, aparece para resolver as coisas do jeito dele.
Em Daredevil (1964) #168, Klaus Janson assume os desenhos da revista, permitindo que Miller se dedicasse mais ao roteiro, fazendo apenas os esboços da arte. A edição é um alívio cômico, com Foggy Nelson, sócio de Murdock, como narrador, chegando a enfrentar sozinho o Rei do Crime. A pegada de humor segue com as trapalhadas do Tucão roubando a armadura do Metaloide na Daredevil (1964) #168.
Com Daredevil (1964) #187 e 190, finalmente chegamos ao arremate da história do Tentáculo, não sem antes vermos uma crise de descontrole no Demolidor, uma Viúva Negra envenenada e quase morrendo e a tentativa de trazer Elektra à vida para assumir o manto do Tentáculo.
A página mais marcante do título Daredevil: Mercenário mata Elektra com o próprio sai
A run termina em Daredevil (1964) #191, com uma ótima trama psicológica onde o Demolidor visita o Mercenário, imobilizado no hospital, e brinca insanamente de roleta russa com o vilão.
A arte do Demolidor na run de Frank Miller
Os desenhos de Frank Miller causaram bom impacto na Daredevil (1964) desde o início, mas é interessante ver sua evolução.
Os traços em Daredevil (1964) mantinham algum padrão das revistas da época. Se pegarmos o traçado característico de Miller em Ronin e O Cavaleiro das Trevas – mesmo que permanentemente mudando –, podemos dizer que os personagens muitas vezes apresentavam estrutura influenciada pelo cubismo, cheio de ângulos, contrastando com aquele traço estilizado dinâmico, influenciado pelos quadrinistas europeus. Essas características dão pistas discretas de que irão surgir em algumas edições da run no Demolidor.
É válido destacar, então, o que Miller buscou empregar desde o início e de forma bem aparente no título: muitos prédios, sujeira, becos escuros e sombras, contrastes, claustrofobia – impressões que chegariam ao ápice em Sin City –. Uma das técnicas que ele usou nesse sentido foram os retângulos sem linhas diagonais.
“Eu vejo a cidade como uma série de retângulos que confinam organismos. Somos criaturas pequenas e delicadas que andam ao redor destas grandes caixas retangulares de concreto. Uma das coisas que eu faço é usar o formato da página e dos painéis para enfatizar isso, muitas vezes para criar um clima mais claustrofóbico”, explica o quadrinista.
Para Miller, Nova York é a representação da vida urbana. Apenas algumas construções, como o Flatiron Building e o Empire State, a George Washington Bridge, eram usados como referências. Todo o restante dos cenários era inventado por ele, mesmo quando baseado em lugares reais. “Quando eu faço Times Square, o que tento capturar é o que vai se lembrar como Times Square, e isso é um monte de cartazes e um grupo de prostitutas.” Os desenhos de Miller, ali, eram a interpretação do imaginário, e não de uma foto ou cena real.
No meio de todos os prédios, quadrados e retângulos, os movimentos dos personagens, inspirados também pelos filmes de kung-fu, tomavam dimensão ímpar. Os momentos de ação tiveram destaque durante toda a run, com Miller usando diversas vezes o recurso de desenhar o personagem em todo seu movimento no mesmo quadro, algo que contrasta de forma poética com o ambiente imóvel de concretos e se torna uma marca da HQ.
É na arte também que entra o peso da mão de Klaus Janson, com linhas finas e buscando colocar emoção em cada traço. Além da dupla obter bastante afinidade, Janson pontua que Miller dava muita liberdade para a arte-finalização e cores, defendendo “os layouts imaginativos que ele usa, o que me dá uma gama bastante livre de possibilidades para preencher. Eu tenho que pensar muito quando estou fazendo as coisas de Frank.”
A movimentação dos personagens dá fôlego aos quadros repetitivos e claustrofóbicos de Miller
Um acordo interessante entre ambos, que passava diretamente pelas mãos de Klaus, eram os tons escuros no traje do Demolidor. “Se a cena é mais aberta, se o caminho estiver livre, então, você terá um personagem vermelho brilhante; se o seu próprio estado de espírito estiver diferente disso, aparecerá mais preto em seu traje e é mais provável que seu rosto seja uma sombra”, detalha Miller.
Curiosamente, antes de Miller, Janson tinha um papel importante como arte-finalista em Daredevil (1964), que sofria constante troca de artistas: “manter os personagens e o visual do título consistentes, apesar das mudanças na equipe.” Mal sabia ele que a run de Miller daria oportunidade para ambos desenvolverem a identidade artística, individual e coletiva, e registrar seus nomes na história dos quadrinhos com tanto sucesso.
Outra curiosidade, Miller afirmou que os traços de Murdock foram inspirados no ator Robert Redford (Todos os Homens do Presidente), bem como Elektra na modelo e fisiculturista Lisa Lyon.
A psique do Demolidor de Miller
Frank Miller deu profundidade única ao Matt Murdock e ao Demolidor. É necessário separar ambos, pois, conforme indica o próprio autor, o primeiro é o ideal do pai, advogado estudioso e de sucesso. Já o segundo é a vontade do personagem, que herdou do patriarca a competência e gosto pela luta, quer bater em bandidos – mais novo, contra-atacar garotos que o sacaneavam –.
Miller foi feliz ao adicionar a ideia do amor e ódio de Matt pelo pugilista Jack “Batalhador” Murdock, relação que para os roteiristas anteriores passava mais por uma admiração. Sabemos que Jack fazia de tudo para sustentar o filho e que não entregou sua última luta, mesmo mandado pela máfia, para não desonrar Matt. Até o incentivo aos estudos, obviamente, era para o bem dele.
O problema é que não lhe era permitido escolha e muito menos dividir o tempo dos livros com outros interesses. Assim a raiva surge contra o pai, que não o permitia ser quem ele era, um garoto que queria brincar na rua e, como sua referência adulta, lutar.
Elektra e Demolidor é um dos melhores casos de amor dos quadrinhos, cheio de artes marciais e ação
Pior, em Daredevil (1964) #191, Miller acrescentou um episódio de violência do Batalhador contra o filho, ao descobrir que Matt bateu em um garoto que o atacou. Onde estão as leis contra Jack? Sim, o amor e o ódio se encaixam muito melhor em uma complexa relação entre pai e filho. Batemos na porta do Complexo de Édipo e do Mito do Pai Terrível.
Nessa linha, o Demolidor vem do id. A vontade sádica do personagem em atacar os vilões. E ele faz isso com autenticidade, pois é filho da Cozinha do Inferno. Miller ressalta que o Demônio anda entre os bandidos e marginais como um deles, colocando medo e aterrorizando.
O sadismo do Demolidor, no entanto, tem limites bem delineados. Não mata e tem “objetivos nobres”. Se não havia mais o castrador Jack Murdock, assassinado, Miller carregou com muita competência a relação entre o advogado, a igreja – como o personagem, Miller tinha descendência irlandesa católica – e a Justiça. Não é um superego poderoso? Murdock é extremamente controlado, mesmo com todas aquelas emoções e desejos. E o autor soube evidenciar esses aspectos na história do Demolidor.
É valido lembrar que, após Daredevil (1964) #191, Frank Miller teria outros momentos importantíssimos por traz das aventuras do Homem Sem Medo, incluindo a roteirização o clássico absoluto A Queda de Murdock (1986). Mas isso fica para a próxima…
*As aspas e comentários dos autores publicadas neste texto foram retirados dos prefácios do encadernado “Demolidor por Frank Miller e Klaus Janson Volume 1”, publicado pela Panini em 2014, e de uma entrevista de ambos ao crítico e historiador Peter Sanderson em 1981.
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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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