O leitor deve ficar avisado que Blonde (2022), filme da plataforma de streaming Netflix não é autobiográfico. Quem já viu ou ainda vai assistir pensando dessa forma se decepcionará, pois, o mesmo está mais para um conto de ficção baseado em um romance que também é ficcional e que, por sua vez, baseia-se em certos “fatos reais” da vida de Marilyn Monroe – que, na verdade, é Norma Jeane. Configuração bagunçada? Invenção?
Verdade seja dita, esse mix de sofrimento, miséria e angústia é que torna o filme difícil de ser aceito pelo público enquanto experiência narrativa, pois não se trata de qualquer pessoa diante da tela mas, sim, um ícone que representa alegria, beleza e encanta gerações até hoje.
O espectador fica desconfortável na poltrona, não sabendo distinguir entre realidade e ficção, pois o que se tem em mente sobre Marilyn Monroe é algo mais forte, empolgante e belo, algo muito maior do que cenas escatológicas de violência, nudez e sexo.
Baseado em “Contos Reais”
As aspas indicam que o longa não compreende totalmente a realidade da vida de Marilyn Monroe ou Norma Jeane (nome real da atriz), por mais que se saiba que a vida dela não tenha sido fácil. O diretor Andrew Dominik (Mindhunter e The Assassination of Jesse James by The Coward Robert Ford) criou uma obra complexa, polêmica e particularizada da vida da atriz, cantora e modelo, pesando a mão de maneira demasiada num roteiro melancólico com tons de horror.
É um filme sobre traumas e vícios em que Norma poderia muito bem servir como simulacro ou simulação da personagem Marilyn, um receptáculo que servisse para que a narrativa fosse contada – aliás, até mesmo inventada.
Afinal, a obra é baseada no livro homônimo da escritora americana Joyce Carol Oates (confira clicando aqui), que “reimagina a vida pessoal e profissional da mulher que o mundo conhece e se aprofunda nos paradoxos do que significa ser famosa na Hollywood do século XX”, segundo prefácio do livro.
Blonde, tanto filme quanto livro, não são uma biografia em sentido tradicional, é importante que o indivíduo faça tal ajuste de expectativas para que não dê crédito em tudo o que visualiza.
Acredita-se que houve da parte do diretor uma tentativa de abordar temáticas como fetiche e objetificação da mulher de forma tal que pudesse demonstrar a crueza e desumanidade dos homens da vida de Marilyn Monroe, bem como à indústria cultural que a cercava.
O longa possui um tom amargo que chega a soar desrespeitoso para com o legado da atriz, afinal, vários fãs pelo mundo todo a enxergam como uma diva e não aceitam que sua memória seja tratada de forma tão vulgar e descaracterizada. O que leva à próxima análise.
Violência Contra a Mulher
O longa possui temas como misoginia e violência contra a mulher, duas palavras que caminham juntas, afinal, uma é o gatilho da outra. Então, não deveria haver surpresas em um filme que narra a vida conturbada de um dos maiores ícones de Hollywood, certo? Depende, pois, a forma como o filme é apresentado pode até soar grotesco para muitos, porém, possui um discurso embutido que serve de alerta à sociedade quanto aos problemas reais enfrentados pelas mulheres.
Sim, Blonde pode ser visto como uma obra que foca num ponto de vista sociocultural que alerta a sociedade envolta com a violência feminina categorizada, afinal, a mídia dá notícia de abusos, estupros e assassinatos contra as mulheres diariamente e pouco é feito para frear essas ações. A violência sofrida pelas mulheres, em todos os sentidos, é fruto de uma sociedade machista, patriarcal e controladora, em que a mulher é alvo de crimes violentos constantes.
Há, no entanto, proteção legislativa para mulheres que sofrem violência por seus parceiros, como é o caso da Lei Maria da Penha (11340/2006) que assegura que “aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar.”
Vítima de uma sociedade que a impede de ocupar espaços e posições de expressão, liberdade e liderança, a mulher vive como objeto de dominação. Todos os dias sujeita à violência, censura e perseguição por uma uma cultura estrutural masculina que trata de forma violenta qualquer ato ou manifestação de pensamento contrário ao status quo vigente.
Desconstrução Traumática
Sob efeito da lente ficcional, o longa de Dominik abusa do lado denso e pesado que permeou a vida de Norma Jeane/Marilyn Monroe ao se concentrar nos traumas e dores vividos por ela.
São de conhecimento geral, aliás, a história de vida de uma criança que sofre com ausência paterna, agressões de uma mãe abusiva e esquizofrênica internada numa instituição psiquiátrica, adolescência complicada passando por vários orfanatos e lares adotivos, “testes do sofá” com produtores de entretenimento na vida adulta para alcançar seu caminho rumo ao estrelato.
A atriz cubana Ana de Armas se transforma em Marilyn Monroe no filme Blonde
A jornada de (des)construção não para por aí, são quase três horas de duração de um filme que insiste em ferir o legado de Monroe justificadas pelo discurso da arte sobre a tela. O diretor até tentou minimizar questões relacionadas às agressões sexuais presentes no longa: “é controverso, é um filme exigente, é o que é, diz o que diz. E se o público não gostar, isso é problema do público”, afirmou. Haja humildade!
Numa das cenas protagonizada por Ana de Armas (a atriz incorporou Marilyn Monroe de maneira soberba, tanto estética quanto dramaturgicamente), a personagem realiza sexo oral no então presidente Kennedy – uma sequência sórdida que não merecia configurar no museu de memórias dos fãs.
Dominik realiza um filme estranho e bruto com cenas que beiram o soft porn, desconstruindo a imagem da atriz por meio de um roteiro demasiadamente triste e de acentuado horror psicológico.
Percebe-se um recado infeliz de fetichização, glamour e erotização por parte de Hollywood na criação e desenvolvimento de uma personagem que deveria ser vendida e consumida pelo público e que, de fato, foi. Blonde traz à tona uma reflexão sobre a criação de um mito norte-americano e suas consequências.
Antítese de Uma Homenagem
Norma Jeane criou uma entidade, Marilyn Monroe, que então a consome e assombra seu verdadeiro eu enquanto Monroe passa por eventos horríveis. Seja pelas mãos de Norma ou Marilyn, seja pela forma narrativa empreendida pelo diretor Andrew Dominik (realidade misturada à ficção), o que pode ser percebido é que ambas as mulheres foram vítimas e prisioneiras daquilo que mais buscavam – fama – mal podendo prever as situações que vivenciaram para alcançar e manter o estrelato.
No fim dos seus dias, a atriz sex symbol de uma geração ingeriu uma quantidade acachapante de medicamentos que determinou o fim de sua vida de maneira precoce.
Que os milhares de fãs NÃO vejam Blonde como a leitura definitiva de Marilyn Monroe, afinal, a atriz está eternizada como uma diva que encanta várias gerações. Definitivamente, seu corpo deve estar revirando no caixão neste instante.

Avaliação: Regular!
Créditos:
Texto: André ‘Brasuka” Roberto – @Comunicafic
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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