Vamos fazer um breve trabalho de imaginação? Bem, tente se imaginar sem luz elétrica, sem água encanada, afastado da civilização e entregue à própria sorte. Agora busque nos recantos mais escuros de sua mente o seu maior medo, aquele que não tem um aspecto físico específico, mas capaz de fazê-lo tremer e se encolher. Vamos piorar um pouco?
Então, acrescente a tudo isso o fato de que não há a quem recorrer, exceto à fé e, claro, ela perde forças conforme os males vão se sucedendo. Ah! Quase esqueço que o medo acima citado está agora presente no plano físico, capaz de tirar gradualmente de você tudo que ama. O que lhe resta? Como reagir a algo tão primal a ponto de leva-lo a duvidar de tudo que lhe traz forças?
Essa é a premissa do longa-metragem A Bruxa.
Antes de prosseguir nesta análise, peço que deixe fora todas as suas esperanças…
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A Bruxa (2015) – Dicas de Streaming
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É terror?
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Certo, essa é a pergunta feita por todos que não viram ou não compreenderam a obra. A Bruxa é um filme de terror, porém mais focado no suspense e com grandes doses de drama. Caso você seja um dos espectadores que vibram com os famigerados “jump scares”, esse filme será uma decepção brutal.
A qualidade do longa-metragem não está em provocar o medo com artifícios narrativos corriqueiros. Ao contrário, o medo provocado é feito através da narrativa bem amarrada e da simbologia embutida. Ao espectador mais atento, creio que surpresas e referências não faltarão.
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Entre o drama, o suspense e o terror, A Bruxa foi escrito para equalizar cada um dos gêneros de forma a agradar os fãs de todos eles.
Para que se situem um pouco melhor, a história provoca o mesmo desconforto visto no filme Midsommar: o mal não espera a noite.
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O começo da trama.
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O filme mostra a vida de uma família que é expulsa de um vilarejo por ter suas crenças religiosas levadas a sério demais. Sim, mesmo sendo ambientado em uma época onde a religião comandava o comportamento, onde o temor a Deus beirava o radicalismo, a família de Thomasin (Anya Taylor-Joy) tem atitudes que assustam até mesmo seus conterrâneos na Nova Inglaterra, uma colônia de imigrantes ingleses.
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A resiliência do pai de Thomasin, um fervoroso cristão chamado William (Ralph Ineson) afronta os líderes da comunidade onde vivem. Diante da persistência em manter seu discurso religioso, William e sua família são banidos e partem para uma localidade afastada onde iniciam nova vida.
A família de Thomasin vive em condições simplórias. Dependem da (rara) caça e têm atribuições para que as tarefas sejam todas cumpridas. Além dela e do pai, há também Katherin (Kate Dickie), a mãe; Caleb (Harvey Scrimshaw), o irmão mais novo e, ainda, os gêmeos Mercy (Ellie Grainger) e Jonas (Lucas Dawson). Juntos, eles provêm o necessário para sobreviver em um ambiente novo, inóspito e isolado do mundo.
Não posso deixar de citar também que há um bebê nessa família, uma criança que será o estopim de uma crise instaurada no âmbito familiar.
Tudo flui com relativa calma até que o bebê desaparece. Como dito, essa criança será o ponto de partida para uma jornada macabra, baseada em relatos da época (século XVII).
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A Bruxa
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Em momento algum a face da bruxa aparece. Ela é a responsável pelo sequestro da criança e, adianto, isso é mostrado de forma bastante incômoda, capaz de provocar mal-estar nos que não têm o hábito de ver filmes do gênero. Destaco que isso ocorre sem a necessidade de cenas escatológicas ou viscerais. Há discrição na forma brutal que determinou o fim de uma vida.
O momento anteriormente citado marca a primeira aparição da bruxa que vive na floresta em frente à nova casa da família de Thomasin. Ela, aparentemente, consegue observá-los com uma eficácia incomum. É uma predadora ágil, inteligente e capaz de usar os pontos fracos de cada um dos integrantes para incitá-los à perda da fé.
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Pecados
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Thomasin é a única que aparece ao longo do filme arrependida de seus pecados. Ela clama a Deus por perdão. Já o restante da família, mesmo os mais inocentes, escondem algo.
Um fato que não passa despercebido é o de que todos – em algum momento – mentem para manter a “unidade” familiar ou em defesa própria. São pessoas cujos pequenos pecados vão sendo revelados gradualmente. Isso os transforma em culpados ou dignos da pena capital? Obviamente, não. Mas é fato que essas brechas morais são importantíssimas para destacá-los aos olhos da Bruxa.
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Simbolismos e questionamentos
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Há muita simbologia cristã e satanista na história. Os nomes de algumas personagens são bíblicos: Caleb, Samuel (o bebê) e Jonas são os três irmãos de Thomasin com nomes extraídos direto da Bíblia. Mercy, a irmãzinha, tem o nome que significa “misericórdia”, algo clamado diariamente por todo cristão junto ao Pai.
Outras simbologias inseridas são a presença da maçã (em um contexto que remete ao pecado original), um bode preto (sempre associado à magia negra), sangue para dar vida (lembram-se da frase o corpo e o sangue de Cristo?) presente em uma sombria alusão, o isolamento e muito mais. Há, também, uma passagem onde a família se reúne à mesa para a refeição e, graças à iluminação precária, William se assemelha muito à clássica imagem europeia de Jesus.
O coelho que aparece em momentos distintos é um símbolo da fertilidade que surge com a adolescência de Thomasin. Essa é uma ótima dica do roteiro que, geralmente, passa despercebida pelos espectadores.
Uma passagem interessante (que faz referência à arte) mostra o bode chamado Black Phillip em duas patas, algo bem similar à pintura de Francisco de Goya, El Aquelarre, feita em 1798.
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Também é preciso atentar para o fato do pai de Thomasin ser um lenhador e a bruxa viver em uma floresta. Isso remete aos contos de Grimm. Do mesmo modo, os gêmeos lembram – em parte – os irmãos João e Maria, também oriundos das fábulas dos irmãs Grimm.
Os questionamentos citados no subtítulo dizem respeito a algo que é mostrado de forma gradual no longa, os erros de cada um dos integrantes da família. Apesar da grande devoção à fé cristã, todos guardam intimamente algum pecado. Outro questionamento ficará por conta da imaginação do espectador durante o decorrer do filme: até que ponto esses pecados influenciam nos estranhos fenômenos que atingem Thomasin e seus entes queridos?
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Por que o filme causa desconforto?
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Esse é um ponto que já foi bastante discutido por outros críticos, mas não será esquecido aqui. A bem da verdade, o “desconforto” é própria da experiência pessoal de cada espectador. Muitos sairão incólumes ao filme. Outros, por sua vez, serão afetados ao ponto de sentirem a angústia de acompanhar as passagens mais pesadas do longa-metragem.
Entretanto, o fato mais impressionante de A Bruxa está na intensa trilha sonora, na fotografia soturna e na aceleração dos acontecimentos próxima ao final. Claro que ver crianças (são quatro mais a Thomasin, uma adolescente) em situações de perigo e sobrenatural provocam muito mais os nervos de quem vê e não pode fazer nada.
A ideia de fazer um filme sobre uma bruxa em um século onde a fé beirava o fanatismo provoca, de muitas formas, a mente do público. Há uma guerra silenciosa entre o bem e o mal, mas o pior é não sabermos, até os últimos instantes, quem é a fonte desse mal.
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Atuações
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O elenco inteiro se mostra de uma competência incomum. Anya já é conhecida do grande público, mas sua atuação nesta obra mostrou todo o potencial que ela tinha. O ator Ralph Ineson e a atriz Katie Dickie dão vida a um casal típico dos árduos anos do século XVII: fechados, rigorosos, donos de uma fé radical, porém capazes de amar seus filhos com o vigor de guerreiros. Eles convencem em seus papéis.
As pequenas crianças Ellie Grainger e Lucas Dawson também são muito exigidas em seus papéis. Suas cenas são intensas e ganham em drama ao final do longa.
Harvey Scrimshaw, o Caleb, é a criança que mais se destaca. Suas atuações são intensas e emocionantes. Ele se encaixou perfeitamente ao papel e é responsável pela mais icônica cena de expurgo do pecado que eu já vi.
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Notas finais
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O filme possui ótimas passagens capazes de provocar medo e incômodo, mas é através do drama e do suspense que nos deparamos com os momentos mais intensos.
O longa-metragem flui de forma rápida, correta e se encaminha para um final assustador. Não aguarde uma obra com final feliz. Não aguarde o “mais do mesmo” que já saturou o gênero terror.
A Bruxa é um filme para ser pensado e degustado vagarosamente, tal qual um bom vinho…
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Créditos:
Texto: Franz Lima (Apogeu do Abismo)
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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